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quinta-feira, 24 de julho de 2008

Emergência e percepção de Novos Valores na Juventude (1)

Hilário Dick


Falando da emergência e da percepção de valores da juventude na atualidade, é necessário partir de alguns pressupostos. Até diria que muito do que penso dizer se situa nesta geografia. Referimo-nos, primeiramente, à questão dos “discursos” que a juventude faz e aos “discursos” que o mundo dos adultos faz com relação ao tema. Assim como não é fácil falar dos valores dos adultos, na atualidade, da mesma forma não é fácil perceber a novidade que os jovens revelam. Para todos que trabalhamos com jovens e sobre jovens, é um assunto que desafia. Falamos de “emergência” e de “percepção” porque está em questão uma realidade possível passível de aparecer, ou não, e uma realidade que tem condições para ser “percebida”, ou não, e até de ser escondida. Estão em jogo dois “discursos” que, assim como podem ser complementares, correm o risco de serem dois discursos entre surdos. Referimo-nos a possíveis análises de atitudes juvenis proferindo “discursos” esquecidos da importância de sujar-se no mundo juvenil, mais preocupados com a lógica de sua teoria do que com o que acontece, de fato, no dia-a-dia das mobilizações de jovens e, por outro, ”discursos” tão mergulhados na realidade que a percepção vai além do que, realmente, está emergindo. Desejo falar de “discursos”, de “sintomas” de uma cultura, pinçar dados de uma pesquisa, recordar o maio de 1968 e apontar paradigmas presentes nos estudos e nas intervenções educativas junto ao segmento juvenil.

Discursos

Apesar das dificuldades que se apresentam, a responsabilidade de todos - também, e de modo especial - da Academia, é a de estarmos alertas aos “discursos” que as juventudes, de fato, fazem. Esses discursos estão na rua, na família, nas aparentes omissões, nas resistências que manifestam, nas preferências pelas músicas, nos modos de vestir e comportar-se, nos modos de mostrar sua afetividade, nos modos de viverem em grupos, nas relações que cultivam, nos medos que expressam, nas pichações nos lugares mais inesperados, nas respostas que vão dando às pesquisas que se fazem, na maneira como encaram a religião, a economia, a política, nas organizações das quais participam e tantos outros. Qual o conteúdo dessa babel de manifestações? Qual o “discurso” que eles fazem nestes fatos ou nestas atitudes? Tomemos o caso da implosão de carros na França e outros países da Europa, protagonizados por milhares de jovens, há pouco tempo. O que emerge e o que se percebe? Evidente que segundo o discurso de alguns analistas dessas realidades, essas manifestações são consideradas como puras badernices, reações de jovens condenados à marginalidade social porque são árabes etc. Outros, talvez, se extasiem ante o mesmo fenômeno, vendo demais. Que valores, enfim, estariam afirmando esses grupos – e outros - capazes de mobilizar milhões de pessoas? Estariam, nestas manifestações, somente “anti-valores” como se pode ler, por vezes, nos noticiários e nos comentários jornalísticos e de outros lugares? Poderiam, estes fatos, revelar alguma novidade? O que se percebe é, de fato, o que poderia estar emergindo? Podemos dizer que estamos sendo convidados para uma honradez não só com a verdade, mas com a própria realidade. Dou-me a permissão de recordar, neste contexto, comentários e reflexões que Jon Sobrino faz a partir do terremoto de El Salvador, em 2001[1]. Ele fala do deixar a realidade falar e recorda Karl Rahner dizendo que “a realidade quer tomar a palavra”, isto é, se a palavra se fez realidade (carne, sarx), a realidade quer fazer-se palavra”, sendo importante que se escute, também, a “geografia” onde se escuta a palavra da realidade. A juventude é uma geografia... “Chegar a ser humano”, diz Sobrino, “é dar voz e palavra à realidade, quando esta é silenciada e oprimida, colaborar com sua balbuciação para que se transforme em palavra clara”[2]. Falar em emergência e percepção de valores na juventude é falar de um terremoto em que ela está mergulhada como grito silenciado.

Há, provavelmente, os que questionam a capacidade de essas mobilizações fazerem algum discurso significativo não porque seja um discurso “novo”, mas porque tudo já está sabido e estariam repetindo, simplesmente, um discurso de tradicionais descontentes com a vida e com o mundo, isto é, um discurso desviante, genérico, de um segmento da sociedade, sem raízes em geografias de novos paradigmas. Poderiam estes fatos revelar, por exemplo, uma atitude de quem se assusta com uma novidade que não se compreende e, por isso, é rejeitada? Uma coisa é certa: só poderemos entender o discurso da juventude na medida em que sujarmos as mãos nela, isto é, se estivermos “encantados” por ela, isto é, encantados pela vida e pelo que ela (a juventude) pode apresentar através do que, para os “não-jovens”, aparece como estranho e imprevisto, assim como sabemos que é a vida. Os “desviantes” não poderiam estar apontando rumos para o que, de fato, poderia ser o caminho (segundo estes jovens) que todos deveriam andar, para a felicidade que todos sonhamos, recordando-nos que a vida vai além da “ordem” que conseguimos construir? Por isso a importância, de um lado, da “emergência” e, do outro, da “percepção”.

Sintomas de uma cultura

Há sempre mais escritos falando dos jovens como as “figuras da desordem”[3]. É chocante ver estudiosos concluindo, baseados na maior pesquisa de amostragem sobre juventude que temos no país, que os jovens de hoje sofrem de três medos: do medo de morrer por causa da violência pela qual se sentem rodeados; do medo de sobrar porque se sentem navegando num mar de exclusão; e do medo de estar desconectado porque – nada mais violento para qualquer jovem que tem o direito de “aparecer” – sentir-se condenado a estar, de diversas formas violentas, desde o início de sua afirmação, “fora de moda”. Quem afirma isso com muita lucidez é Regina Novaes Coelho, pedagoga que, além de suas pesquisas, trabalhou na Secretaria Nacional da Juventude. Ao mesmo tempo em que a juventude é (encarna) a “figura da desordem”, o sistema condena-a a ser “da desordem” do jeito dele, fazendo-a mover-se por medos que lhes roubam o que lhes é mais característico: a alegria de viver.

Recordaria, também, um escrito da psicanalista Maria Rita Kehl escrevendo sobre “A juventude como sintoma da cultura”[4] e um escrito muito questionador de Francisco Ortega falando “Das utopias sociais às utopias corporais: identidades somáticas e marcas corporativas” [5]. Kehl recorda Nelson Rodrigues dizendo que “o Brasil de 1920 era uma paisagem de velhos” e que “os moços não tinham função nem destino. A época não suportava a mocidade”. Escrevendo numa data em que se preparava tudo que aconteceria com a juventude hitlerista e a juventude fascista e a juventude falangista e muitas outras juventudes, a pergunta que se poderia fazer é se houve alguma época que se suportava a mocidade... Francisco Ortega, por sua vez, nos desafia firmemente na forma como analisa o que significa, especialmente para a juventude e a adolescência, a substituição da utopia social pela utopia corpórea, onde o outro – praticamente- deixa de existir.

Kehl fala, igualmente, dos jovens que vão encontrando, sempre mais, adultos que os deixam “desamparados” (sem referências, sem limites, sem balizas) e, por isso, reagem e começam a fazer – por sua conta e de modo talvez mais agressivo que em outros tempos - as regras que, há meio século, começavam os que foram apelidados de “rebeldes sem causa”. Diz a psicanalista, com muito acerto, que, de vez em quando, os adultos não se dão conta que a desvalorização da experiência, isto é, do caminho andado, dos valores vividos e afirmados, esvazia o sentido da vida. “Descartado o passado”, diz Kehl, “em nome de uma eterna juventude, produz-se um vazio difícil de suportar”. O que se está dizendo é que a falta de referenciais não é, para qualquer jovem, coisa pequena. Diz a mesma psicanalista, por isso, que “a rebeldia dos adolescentes parece, antes, um apelo a que os pais manifestem alguma autoridade e façam restrição ao gozo”, afirmando que o limite faz parte de nossa grandeza, também do/a jovem. Por isso Kehl diz, ainda, mais adiante, que “a convivência com a criminalidade dos marginais e dos miseráveis acovarda e corrompe os adolescentes, principalmente quando estes perdem confiança na justiça e na polícia que deveria proteger a sociedade toda”. (...) É que “a convivência com o cinismo e com a ilegalidade das práticas da elite (que conhecemos como corrupção dos “colarinhos brancos”) corrompe e educa para o crime boa parte das novas gerações, de maneira muito profunda e eficiente”.

Estamos dizendo, com isso, que desejamos, por vezes, ver valores, por parte de jovens, que se vêem rodeados de anti-valores dos adultos e vice-versa... Falando dos valores que, talvez, sonhamos serem vividos pela juventude, não podemos esquecer que o jovem de nenhuma época, suporta adultos – desculpem a expressão - pregando uma “moral de cuecas” e vice-versa. Olhando e lendo, portanto, os valores (ou anti-valores) da juventude, precisamos dar-nos conta que estamos diante de um “sintoma” e que a raiz do fenômeno está não somente na juventude. Todos somos a juventude que contemplamos, movidos pelos trajes que não enganam a ninguém, nem a nós mesmos – se tivermos honradez com a realidade. Compreender a juventude exige que sejamos – também por uma atitude típica que o jovem com razão espera do mundo dos adultos – que se pode chamar de honradez frente à realidade juvenil. É a dinâmica da emergência e da percepção.
Notas

[1] SOBRINO, Jon. “Onde está Deus?”. São Leopoldo, Editora Sinodal, 2007.
[2] Idem, p. 78.
[3] ZUCCHETTI, Dinora Tereza. “Jovens: a educação, o cuidado e o trabalho como éticas de ser e estar no mundo”. Novo Hamburgo: Edit. Feevale, 2003,p. 188s.
[4] “Juventude e Sociedade – Trabalho, Educação, Cultura e Participação”, São Paulo, Instituto Cidadania, 2004, p. 89-114.
[5] “Culturas Jovens – Novos mapas do afeto”, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2006, p. 42-58.

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