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sexta-feira, 19 de novembro de 2010

A retomada das revoluções estudantis

O ano de 1968 começou em Berkeley e em Paris, o 1977 na Itália e na Alemanha, talvez algum dia diremos que um novo movimento floresceu no outono de 2010 às margens do rio Tâmisa. “Tenho certeza, é o início de alguma coisa importante”, diz o aluno com os livros debaixo do braço, ignorando que repete o slogan de seus pais, a frase que, das barricadas do maio francês, há mais de quarenta anos atrás, incendiou o mundo. “Sim, a manifestação de ontem em Londres é apenas o início”, insiste Carl, 23 anos, matriculado em sociologia, de fronte ao portão da Escola de Economia de Londres, a mais prestigiosa universidade de ciência política do planeta.

A reportagem é de Enrico Franceschini, publicada no jornal La Repubblica, 12-11-2010. A tradução é de Anete Amorim Pezzini.

“Continuaremos a lutar, não somente para impedir o aumento das taxas universitárias, mas para opormo-nos a uma política que, na Grã-Bretanha e em todo o Ocidente, está fazendo os mais indefesos pagarem as culpas dos mais fortes, os mais pobres pagarem os excessos dos banqueiros que provocaram a recessão global”. Em volta dele, os seus companheiros assentem, cada um tem algo a dizer: sobre os confrontos com a polícia, os vidros quebrados, o outono quente e o inverno de descontentamento. “Já sucedeu que as revoluções sociais partiram dos estudantes”, concordam. Talvez sonhem. Mas têm a idade certa para sonhar.

Chuva e rajadas de vento: bastaria o tempo para apagar o fogo que quarta-feira à noite brilhava em volta da Millbank Tower, o arranha-céu em que está a sede do Partido Conservador, ocupado e tomado de assalto pela maior manifestação estudantil ocorrida na capital em duas décadas. O primeiro ministro, David Cameron, condena “o intolerável” acontecimento; o prefeito Boris Johnson, também ele do Tory, atribui a responsabilidade a “uma minoria de desordeiros”. Mas basta subir um pouco o Tâmisa, deixando para trás as barricadas da polícia e o parlamento de Westminster, para ouvir opiniões bastante diversas entre os “desordeiros” de volta do ataque.

Fundada há mais de um século pela Sociedade Fabian, a Escola de Economia de Londres (LSE) não é o foco do movimento estudantil, pelo menos não é o único: mas é a universidade onde a paixão política é mais forte. A despeito do nome, não se estuda somente economia, mas, sobretudo, as ciências políticas e sociais. Passaram tantos pelos seus bancos: de John Kennedy a Romano Prodi, até Ed Miliband, novo líder do Partido Trabalhista britânico. Os seus reitores incluem o filósofo Ralph Dahrendorf e o sociólogo Anthony Giddens. Há uma incrível relação docentes-estudantes de 1 para 9: mais de mil professores, tutores e pesquisadores por nove mil alunos.

É a universidade da Terra em que é mais difícil de entrar: 15 pedidos de inscrição para cada vaga. E a mais étnica: diz-se que há estudantes de tantas nacionalidades quanto são os países membros da ONU. Ei-las aqui: uma banquinha de alunos israelenses faz propaganda para a paz no Oriente Médio, uma dos movimentos pela democratização de Pequim, outra de islâmicos para ajuda ao Paquistão inundado. Há até um minicortejo de jovens que agitam cartazes com os escritos “Libertem as taxas”, isto é, liberem as taxas universitárias: “Nós queremos que venham aumentadas, não diminuídas”, dizem, “somos pelo mercado livre, até no campo acadêmico”.

Pai inglês e mãe alemã, o aluno que me serve de guia torce o nariz. “Protestamos também por isso, para impedir que a nossa universidade torne-se uma outra coisa”, explica Carl. “Uma vez os que desejavam ganhar dinheiro iam para Oxford, os que acreditavam nas causas sociais vinham para cá. Não mais. No ano passado, mil alunos da LSE candidataram-se a uma vaga de trabalho na Goldmans Sachs. Pelo menos metade dos inscritos desejava tornarem-se banqueiros. Se as taxas universitárias triplicam, para eles não é um problema”. O primeiro a tripicá-la foi o trabalhista Blair, elevando as taxas de inscrição de mil para três mil libras esterlinas por ano. Agora, a reforma apresentada pelo governo conservador de Cameron propõe fazê-las ir até nove mil libras esterlinas (10.600 euros) por ano. Significa de 40 a 50 mil euros por uma láurea: o preço mais alto da Europa por uma educação universitária. Esse dinheiro pode ser obtido por empréstimo e ser restituído gradualmente com base em quão alta é a renda que se ganha depois da formatura.

Um pacto aceitável, segundo os Tories: uma universidade de elite — e as universidades britânicas são as melhores de todas, depois das dos Estados Unidos da América — custa caro, mas garante grandes ganhos aos seus egressos. “Raciocínio que apresenta dois problemas”, objetam Carl e seus companheiros. “Se não quero um trabalho que me dê ganhos abundantes, se prefiro um que me dá satisfação, mas não me torna rico, como restituo todo aquele dinheiro? E, em segundo lugar, um sistema desse tipo introduz a lógica de mercado na instrução superior, induz implicitamente à escolha de um curso de estudo para profissões altamente bem pagas. Mesmo em um lugar como a Escola de Economia de Londres, a reforma de Cameron aumentará o número dos aspirantes à Goldman Sachs, e reduzirá aqueles, como eu, atraídos pelo comprometimento social”.

Tento relatar o seu dia típico, mas se resume em duas linhas: "Eu venho à faculdade às dez da manhã e saio à meia-noite, com exceção das pausas para comer aqui por perto." Bem, os manifestantes de 68 e 77 não tinham exatamente a mesma vida. "Eu não sou um CDF", Carl sorri da piada. "Nós fazemos quase tudo assim. Não faz sentido inscrever-se na LSE, se você quer perder tempo. Para mim, ir para a aula ou estudar na biblioteca é um prazer." Como prolongar o prazer, porém, se falta o apoio financeiro? A Grã-Bretanha, como grande parte do Oeste, saiu da recessão com uma dívida terrível. Todos os especialistas concordam que não há outra escolha senão cortar os gastos públicos: muito ou pouco, agora ou mais tarde, de qualquer modo terá de cortá-los. Quem paga, então, para ter uma elite? "Cameron não se limita a aumentar as taxas universitárias, está também zerando o financiamento público à educação. Seu verdadeiro projeto é privatizar as universidades, como na América. Isso é o que queremos para a Europa de amanhã? Nós, do movimento estudantil, pensamos que os serviços de utilidade pública, em particular a educação e a saúde, devem ser fornecidos pelo Estado. E nós pensamos que é injusto fazer os mais vulneráveis pagarem esta crise, quando foi causada pelos erros e excessos das categorias mais fortes, como os banqueiros. Que eles paguem mais impostos, não os alunos."

Haveria muitas outras perguntas, mas agora Carl e seus amigos querem ir estudar na biblioteca, ao contrário de seus pais de ’68 e ‘77, um dia após uma manifestação como a de ontem teriam passado fechados em uma assembleia geral para discutir . "Eu também estava lá no evento e diante do palácio dos Tories”, diz o estudante. "Eu não joguei pedras nem quebrei janelas; em princípio, sou contra a violência, mas temos marchado tantas outras vezes e obtido somente modestos parágrafos nos jornais, mas, desta vez, graças à desordem que explodiu, todas as TV e jornais falam de nós, inclusive a sua". Ok, mas e agora? "Agora aguardamos os sindicatos, os funcionários públicos, os trabalhadores. Voltaremos a nos manifestar, também junto com eles, também incluindo as suas batalhas. O mundo não precisa ser necessariamente como agrada aos banqueiros. Esse foi o começo, e continuaremos a lutar." Isso é apenas uma estreia, continuaremos o combate: onde já ouvimos essa história?

http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=38507

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Por que persiste a Igreja-poder?

Vou abordar um tema incômodo, mas incontornável: como pode a instituição-Igreja, como a descrevi num artigo anterior, com características autoritárias, absolutistas e excludentes se perpetuar na história? A ideologia dominante responde: “só porque é divina”. Na verdade, este exercício de poder não tem nada de divino. Era o que Jesus exatamente não queria. Ele queria a hierodulia (sagrado serviço) e não a hierarquia (sagrado poder). Mas esta se impôs através dos tempos.

Instituições autoritárias possuem uma mesma lógica de autoreprodução. Não é diferente com a Igreja-instituição. Em primeiro lugar, ela se julga a única verdadeira e tira o título de “igreja” a todas as demais. Em seguida cria-se um rigoroso enquadramento: um pensamento único, uma única dogmática, um único catecismo, um único direito canônico, uma única forma de liturgia. Não se tolera a crítica nem a criatividade, vistas como negação ou denunciadas como criadoras de uma Igreja paralela ou de um outro magistério.

Em segundo lugar, se usa a violência simbólica do controle, da repressão e da punição, não raro à custa dos direitos humanos. Facilmente o questionador é marginalizado, nega-se-lhe o direito de pregar, de escrever e de atuar na comunidade. O então Card. Joseph Ratzinger, Presidente da Congregação para a Doutrina da Fé, em seu mandato, puniu mais de cem teólogos. Nesta mesma lógica, pecados e crimes dos sacerdotes pedófilos ou outros delitos, como os financeiros, são mantidos ocultos para não prejudicar o bom nome da Igreja, sem o menor sentido de justiça para com as vítimas inocentes.

Em terceiro lugar, mitificam-se e quase idolatram-se as autoridades eclesiásticas principalmente o Papa que é o “doce Cristo na Terra”. Penso eu lá com meus botões: que doce Cristo representava o Papa Sérgio (904), assassino de seus dois predecessores ou o Papa João XII (955), eleito com a idade de 20 anos, adúltero e morto pelo marido traído ou, pior, o Papa Bento IX (1033), eleito com 15 anos de idade, um dos mais criminosos e indignos da história do papado, chegando a vender a dignidade papal por 1000 liras de prata?

Em quarto lugar, canonizam-se figuras cujas virtudes se enquadram no sistema, como a obediência cega, a contínua exaltação das autoridades e o “sentir com a Igreja (hierarquia)”, bem no estilo fascista segundo o qual “o chefe (o ducce, o Führer) sempre tem razão”.

Em quinto lugar, há pessoas e cristãos com natureza autoritária, que acima de tudo apreciam a ordem, a lei e o princípio de autoridade em detrimento da lógica complexa da vida que tem surpresas e exige tolerância e adaptações. Estes secundam esse tipo de Igreja bem como regimes políticos autoritários e ditatoriais. Aliás, há uma estreita afinidade entre os regimes ditatoriais e a Igreja-poder como se viu com os ditadores Franco, Salazar, Mussolini, Pinochet e outros. Padres conservadores são facilmente feitos bispos e bispos fidelíssimos a Roma são promovidos, fomentando a subserviência. Esse bloco histórico-social-religioso se cristalizou e garantiu a continuidade a este tipo de Igreja.

Em sexto lugar, a Igreja-poder sabe do valor dos ritos e símbolos pois reforçam identidades conservadoras, pouco zelando por seus conteúdos, contanto que sejam mantidos inalteráveis e estritamente observados.
Em razão desta rigidez dogmática e canônica, a Igreja-instituição não é vivida como lar espiritual. Muitos emigram. Dizem sim ao cristianismo e não à Igreja-poder com a qual não se identificam. Dão-se conta das distorções feitas à herança de Jesus que pregou a liberdade e exaltou o amor incondicional.

Não obstante estas patologias, possuímos figuras como o Papa João XXIII, Dom Helder Câmara, Dom Pedro Casaldáliga, Dom Luiz Flávio Cappio e outros que não reproduzem o estilo autoritário, nem apresentam-se como autoridades eclesiásticas mas como pastores no meio do Povo de Deus. Apesar destas contradições, há um mérito que importa reconhecer: esse tipo autoritário de Igreja nunca deixou de nos legar os evangelhos, mesmo negando-os na prática, e assim permitindo-nos o acesso à mensagem revolucionária do Nazareno. Ela prega a libertação mas geralmente são outros que libertam.
Leonardo Boff é teólogo e escritor.

‘A Igreja precisa de uma reforma urgente’,afirma jesuíta egípcio em carta dirigida a Bento XVI

O jesuíta egípcio mais destacado nos âmbitos eclesial e intelectual, Henri Boulad, lança um SOS para a Igreja de hoje em uma carta dirigida a Bento XVI. A carta foi transmitida através da Nunciatura no Cairo. O texto circula em meios eclesiais de todo o mundo. Henri Boulad é autor de Deus e o mistério do tempo (Loyola, 2006) e O homem diante da liberdade (Loyola, 1994), entre outros. A carta está publicada no sítio Religión Digital, 31-01-2010.
Santo Padre:
Atrevo-me a dirigir-me diretamente a Você, pois meu coração sangra ao ver o abismo em que a nossa Igreja está se precipitando. Saberá desculpar a minha franqueza filial, inspirada simultaneamente pela “liberdade dos filhos de Deus” a que São Paulo nos convida e pelo amor apaixonado à Igreja. Agradecer-lhe-ei também que saiba desculpar o tom alarmista desta carta, pois creio que “são menos cinco” e que a situação não pode esperar mais.
Apresentação
Permite-me, em primeiro lugar, apresentar-me. Sou jesuíta egípcio-libanês do rito melquita e logo farei 78 anos. Há três anos sou reitor do Colégio dos jesuítas no Cairo, após ter desempenhado os seguintes cargos: superior dos jesuítas em Alexandria, superior regional dos jesuítas do Egito, professor de Teologia no Cairo, diretor da Cáritas-Egito e vice-presidente da Cáritas Internacional para o Oriente Médio e a África do Norte.
Conheço muito bem a hierarquia católica do Egito por ter participado durante muitos anos de suas reuniões como Presidente dos Superiores Religiosos de Institutos no Egito. Tenho relações muito próximas com cada um deles, alguns dos quais são ex-alunos meus. Por outro lado, conheço pessoalmente o Papa Chenouda III, que via com frequência. Quanto à hierarquia católica da Europa, tive a ocasião de me encontrar pessoalmente muitas vezes com alguns de seus membros, como o cardeal Koening, o cardeal Schönborn, o cardeal Martini, o cardeal Daneels, o arcebispo Kothgasser, os bispos diocesanos Kapellari e Küng, os demais bispos austríacos e outros bispos de outros países europeus. Estes encontros se produzem por ocasião das minhas viagens anuais para dar conferências pela Europa: Áustria, Alemanha, Suíça, Hungria, França, Bélgica... Nestas ocasiões me dirijo a auditórios muito diversos e à mídia (jornais, rádios, televisões...). Faço o mesmo no Egito e no Oriente Próximo.
Visitei cerca de 50 países nos quatro continentes e publiquei cerca de 30 livros em aproximadamente 15 línguas, sobretudo em francês, árabe, húngaro e alemão. Dos 13 livros nesta língua, talvez Você tenha lido Gottessöhne, Gottestöchter (Filhos, filhas de Deus), que o seu amigo o Pe. Erich Fink, da Baviera, lhe fez chegar em suas mãos.
Não digo isto para me vangloriar, mas para lhe dizer simplesmente que as minhas intenções se fundam em um conhecimento real da Igreja universal e de sua situação atual, em 2009.
Constatações
Volto ao motivo desta carta e tentarei ser o mais breve, claro e objetivo possível. Em primeiro lugar, algumas constatações (a lista não é exclusiva):
1. A prática religiosa está em constante declive. Um número cada vez mais reduzido de pessoas da terceira idade, que desaparecerão logo, são as que frequentam as igrejas da Europa e do Canadá. Não resta outro remédio senão fechar estas igrejas ou transformá-las em museus, mesquitas, clubes ou bibliotecas municipais, como já se está fazendo. O que me surpreende é que muitas delas estão sendo completamente reformadas e modernizadas mediante grandes gastos com a ideia de atrair os fiéis. Mas não será suficiente para frear o êxodo.
2. Seminários e noviciados se esvaziam no mesmo ritmo, e as vocações caem vertiginosamente. O futuro é sombrio e há quem se pergunte quem irá substituir os sacerdotes. Cada vez mais paróquias europeias estão a cargo de sacerdotes da Ásia ou da África.
3. Muitos sacerdotes abandonam o sacerdócio e os poucos que ainda o exercem – cuja idade média ultrapassa muitas vezes a da aposentadoria – têm que se encarregar de muitas paróquias, de modo expeditivo e administrativo. Muitos deles, tanto na Europa como no Terceiro Mundo, vivem em concubinato à vista de seus fiéis, que normalmente os aceitam, e de seu bispo, que não pode aceitá-lo, mas que tem em conta a escassez de sacerdotes.
4. A linguagem da Igreja é obsoleta, anacrônica, chata, repetitiva, moralizante, totalmente desadaptada à nossa época. Não se trata em absoluto de acomodar-se nem de fazer demagogia, pois a mensagem do Evangelho deve ser apresentada em toda a sua crueza e exigência. Seria preciso antes promover essa “nova evangelização”, a que nos convidava João Paulo II. Mas esta, ao contrário do que muitos pensam, não consiste em absoluto em repetir a antiga, que já não diz mais nada, mas em inovar, inventar uma nova linguagem que expresse a fé de modo apropriado e que tenha significado para o homem de hoje.
5. Isto não poderá ser feito senão mediante uma renovação em profundidade da teologia e da catequese, que deveriam ser repensadas e reformuladas totalmente. Um sacerdote e religioso alemão que encontrei recentemente me dizia que a palavra “mística” não é mencionada uma única vez no Novo Catecismo. Não podia acreditar nisso. Temos de constatar que a nossa fé é muito cerebral, abstrata, dogmática e se dirige muito pouco ao coração e ao corpo.
6. Em consequência, um grande número de cristãos se volta para as religiões da Ásia, as seitas, a nova era, as igrejas evangélicas, o ocultismo, etc. Não é de estranhar. Vão buscar em outros lugares o alimento que não encontram em casa, têm a impressão de que lhes damos pedras como se fossem pão. A fé cristã, que em outro tempo outorgava sentido à vida das pessoas, é para elas hoje um enigma, restos de um passado que acabou.
7. No plano moral e ético, os ditames do Magistério, repetidos à saciedade, sobre o matrimônio, a contracepção, o aborto, a eutanásia, a homossexualidade, o matrimônio dos sacerdotes, as segundas uniões, etc., já não dizem mais nada a ninguém e produzem apenas desleixo e indiferença. Todos estes problemas morais e pastorais merecem algo mais que declarações categóricas. Necessitam de um tratamento pastoral, sociológico, psicológico e humano... em uma linha mais evangélica.
8. A Igreja católica, que foi a grande educadora da Europa durante séculos, parece esquecer que a Europa chegou à sua maturidade. A nossa Europa adulta não quer ser tratada como menor de idade. O estilo paternalista de uma Igreja “Mater et Magistra” está definitivamente defasada e já não serve mais. Os cristãos aprenderam a pensar por si mesmos e não estão dispostos a engolir qualquer coisa.
9. Os países mais católicos de antes – a França, “primogênita da Igreja”, ou o Canadá francês ultra-católico – deram uma guinada de 180º e caíram no ateísmo, no anticlericalismo, no agnosticismo, na indiferença. No caso de outros países europeus, o processo está em marcha. Pode-se constatar que quanto mais dominado e protegido pela Igreja esteve um povo no passado, mais forte é a reação contra ela.
10. O diálogo com as outras igrejas e religiões está em preocupante retrocesso hoje. Os grandes progressos realizados há meio século estão sob suspeita neste momento.
Reação
Diante desta constatação quase demolidora, a reação da igreja é dupla:
– Tende a minimizar a gravidade da situação e a consolar-se constatando certo dinamismo em sua facção mais tradicional e nos países do Terceiro Mundo.
– Apela para a confiança no Senhor, que a sustentou durante 20 séculos e será capaz de ajudá-la a superar esta nova crise, como o fez nas precedentes. Por acaso, não tem promessas de vida eterna?
Sugestões
A isto respondo:
1. Não é apoiando-se no passado nem recolhendo suas migalhas que se resolverão os problemas de hoje e de amanhã.
2. A aparente vitalidade das Igrejas do Terceiro Mundo é equívoca. Segundo parece, estas novas Igrejas, mais cedo ou mais tarde, atravessarão as mesmas crises que a velha cristandade europeia conheceu.
3. A Modernidade é irreversível, e é por ter esquecido isso que a Igreja já se encontra hoje em semelhante crise. O Vaticano II tentou recuperar quatro séculos de atraso, mas tem-se a impressão de que a Igreja está fechando lentamente as portas que se abriram então, e é tentada a voltar para Trento e o Vaticano I, mais que voltar-se para o Vaticano III. Recordemos a declaração de João Paulo II tantas vezes repetida: “Não há alternativa para o Vaticano II”.
4. Até quando continuaremos jogando a política do avestruz e a esconder a cabeça na areia? Até quando evitaremos olhar as coisas de frente? Até quando seguiremos dando as costas, encrespando-nos contra toda crítica, em vez de ver ali uma oportunidade de renovação? Até quando continuaremos postergando ad calendas graecas uma reforma que se impõe e que foi abandonada durante muito tempo?
5. Somente olhando decididamente para frente e não para trás a Igreja cumprirá sua missão de ser “luz do mundo, sal da terra e fermento na massa”. Entretanto, o que infelizmente constatamos hoje é que a Igreja está no final da fila da nossa época, depois de ter sido a locomotiva durante séculos.
6. Repito o que dizia no começo desta carta: “São menos cinco” – fünf vor zwölf! A História não espera, sobretudo em nossa época, em que o ritmo se embala e se acelera.
7. Qualquer operação comercial que constata um déficit ou disfunção se reconsidera imediatamente, reúne especialistas, procura recuperar-se, mobiliza todas as suas energias para superar a crise.
8. Por que a Igreja não faz algo semelhante? Por que não mobiliza todas as suas forças vivas para um aggiornamento radical? Por quê? Por preguiça, desleixo, orgulho, falta de imaginação, de criativadade, omissão culpável, na esperança de que o Senhor as resolverá e que a Igreja conheceu outras crises no passado? Cristo, no Evangelho, nos alerta: “Os filhos das trevas são mais espertos que os filhos da luz...”.
Tripla reforma
Então, o que fazer? A Igreja tem hoje uma necessidade imperiosa e urgente de uma tripla reforma:
1. Uma reforma teológica e catequética para repensar a fé e reformulá-la de modo coerente para os nossos contemporâneos. Uma fé que já não significa nada, que não dá sentido à existência, não é mais que um adorno, uma superestrutura inútil que cai por si mesma. É o caso atual.
2. Uma reforma pastoral para repensar de cabo a rabo as estruturas herdadas do passado.
3. Uma reforma espiritual para revitalizar a mística e repensar os sacramentos com vistas a dar-lhes uma dimensão existencial e articulá-los com a vida.
Teria muito a dizer sobre isto. A Igreja de hoje é muito formal, muito formalista. Tem-se a impressão de que a instituição asfixia o carisma e que o que em última instância conta é uma estabilidade puramente exterior, uma honestidade superficial, certa fachada. Não corremos o risco de que um dia Jesus nos trate de “sepulcros caiados”?
Conclusão
Para terminar, sugiro a convocação de um Sínodo geral a nível da Igreja universal, do qual participarão todos os cristãos – católicos e outros – para examinar com toda franqueza e clareza os pontos assinalados anteriormente e os que forem propostos. Este Sínodo, que duraria três anos, terminaria com uma Assembleia Geral – evitemos o termo “concílio” – que sintetizasse os resultados desta pesquisa e tirasse daí as conclusões.
Termino, Santo Padre, pedindo-lhe perdão pela minha franqueza e audácia e solicito a vossa paternal bênção. Permita-me também dizer-lhe que vivo estes dias em sua companhia, graças ao seu extraordinário livro Jesus de Nazaré, que é objeto da minha leitura espiritual e de meditação cotidiana.
Seu afetíssimo no Senhor,
Pe. Henri Boulad, SJ
henrioulad@yahoo.com
31 de janeiro de 2010

A ARTE DE ACOMPANHAR

Introdução

Os Padres Apostólicos falam do “acompanhamento” como sendo a arte das artes. Uma realidade muito delicada já que se trata de ajudar os irmãos a crescer na docilidade ao Espírito. É a arte de conhecer as moções do Espírito que não tem nem regras nem tempos para agir. É, basicamente, anárquico: “O vento sopra onde quer. Você ouve o barulho, mas não sabe de onde ele vem, nem para onde vai. Acontece a mesma coisa com quem nasceu do Espírito” (Jo3,8),

Aprender a acompanhar é aprender a reconhecer como a graça de Deus opera em cada homem e em cada mulher, e o faz de maneira própria, adequada à sua história, à sua personalidade e a seus desejos mais profundos. Acompanhar não significa somente reconhecer as sugestões e moções do Espírito. Também devemos aprender a reconhecer o mau espírito. O espírito do maligno.

O Evangelho mostra-nos, na parábola do trigo e do joio, como ambos vão crescendo juntos. Portanto esta mistura de luz e treva, de trigo e de joio, é que faz da vida espiritual uma constante luta. Uma luta espiritual. A arte de acompanhar - o que há alguns anos se chamava de “direção espiritual” - é parte importante da tradição da Igreja e tem raízes profundas na Sagrada Escritura.

É de grande proveito tomar a Escritura e lê-la na perspectiva de como o Deus de Israel é um Deus que sabe acompanhar. É a primeira escola onde podemos aprender esta difícil arte que Deus sabe fazer com delicadeza. Vemos isso na sua relação com Abraão, com Moisés, com Davi e com Jeremias. São muitos os textos que podemos citar e nos quais Deus se apresenta metido dentro da história, acompanhando o andar do homem e do povo. Lemos em 2 Samuel: “Eu tirei você do pastoreio, onde você cuidava das ovelhas, para fazê-lo chefe do meu povo Israel. Estive com você em toda parte por onde você andava...” (2Sam 7,8-9). Em Jeremias pode-se ler: “Não diga ´sou jovem´ porque você irá para aqueles a quem eu o mandar. O que eu mando você o dirá. Não os tema porque estou com você para librá-lo” (Jer 1,7-19).

No Novo Testamento Jesus é o mestre. O Filho de Deus se apresenta como um homem acompanhado e acompanhante. É um homem acompanhado por seu Pai. Tudo que faz, tudo que diz, é sob o olhar do Pai que o apoia com seu amor eterno. É o acompanhante do grupo que chama de “discípulos”, em seu lento processo de conversão e nos passos que vão dando para mudar de estilo de vida, de maneira de pensar e sentir e de mudar os critérios de análise da realidade que lhes tocou viver.

Assim, esta prática passa para a Igreja e ela a assume como uma forma de evangelizar o homem e fazer que este se faça alegria e esperança para outros, se faça alegria para Deus. O santo povo de Deus tem direito a ter acompanhantes para seguir os caminhos do Evangelho. Desgraçadamente, nos últimos anos viveu-se uma certa crise na prática da direção espiritual. Atualmente, contudo, esta crise está sendo superada com vantagem. São muitos os interessados em aprender a acompanhar, como também os que buscam ser acompanhados.

São muitas as experiências vitais que tem alguns elementos próprios do acompanhamento: o ser pai e mãe, o ser mestre de noviços ou formador, o trabalhar em terapia ou como professor. Todos ao serviços, ministérios, para criar beleza, vida livre, desenvolvimento e verdade.


I. QUE É O ACOMPANHAMENTO? - VISÃO NEGATIVA

É difícil responder já que não há somente um modo de fazê-lo. Há pessoas que o fazem de forma muito diversas seja por sua formação, seja pela ênfase que cada um dá ,como também são distintas as pessoas acompanhadas. Não é o mesmo acompanhar um jovem, um adulto ou uma pessoa com experiência. Por isso é melhor pôr-nos de acordo em alguns termos, em alguns objetivos e em certos caminhos. O resto é arte e, portanto, precisam-se de artesãos.

Precisar-se-ia de um mestre sábio e com grande experiência que pudesse esclarecer tantas dúvidas que moram em nosso coração, mas os verdadeiros mestres são os que sabem ficar calados ante a complexo a tarefa e convidam a fazer caminhos próprios, além de qualquer receita que facilitaria nossas buscas.

Que é o acompanhamento? É mais fácil explicitar primeiramente os caminhos errados para, depois, propor algumas afirmações a respeito do que é acompanhar.



1.1 Não é uma terapia psicológica

Os acompanhantes não são terapeutas, nem é honroso pretender sê-lo. Não se trata de favorecer processos de introspeção e explicitação de dificuldades psicológicas dos acompanhados, a fim de serem sanados. O santo povo de Deus merece acompanhantes, mais que psicólogos. O acompanhante é uma testemunha da passagem de Deus pela vida de um homem ou de uma mulher; é alguém que descobre o mistério da vida que habita na profundeza do acompanhado e o faz com os olhos de Deus para amá-lo com o coração de Deus acompanhando-o em sua busca incessante de viver. O acompanhamento e ajuda psicológica não se contradizem nem se excluem, mas são distintos.

1.2 Não é um encontro de amigos

São muito distintas uma conversa entre amigos e uma conversa de acompanhamento. O acompanhamento pode fazer-se entre amigos, mas requer que cada um assuma um lugar diferente. Um é o acompanhado e o outro o acompanhante. São papéis diferentes, não significando que um seja superior ao outro. Além disso, o acompanhamento e a amizade têm tem uma evolução distinta. Sendo o primeiro temporal, toma uma etapa do desenvolvimento espiritual. Por outro lado, a amizade pode estender-se por toda a vida.

1.3 Não é carregar a sorte do acompanhado

É preciso ter cuidado com nossos paternalismo ou maternalismos. Estariam indicando que não estamos tratando o acompanhado como um irmão ou um adulto, como uma pessoa com força e liberdade. As conseqüências desta atitude são perigosas. Produzem dependências e infantilismos que levarão à grave crise da direção espiritual. Quando reconhecemos em nós o sentir-nos responsáveis da vida e da sorte do acompanhado, precisamos parar e questionar-nos sobre o que estamos fazendo, sobre qual de nossa parte está entrando na relação e a perturba, tirando-lhe a liberdade, a gratuidade e a beleza.

1.4 Não é pregar nem querer que outros repitam minha experiência

O que ajudou a mim não vai, necessariamente, ajudar o outro que tem história, sensibilidade e desejos distintos. Não podemos, por isso, invocar constantemente a nossa experiência. Somente quando ela pode ajudar em algumas situações específicas. Não ajuda falar em abstrato nem cair nas generalizações. Também não temos o direito de julgar moralmente os nossos acompanhados. Isto é o que faziam os fariseus e o Evangelho nos mostra como foram rejeitados por Jesus em suas práticas.

1.5 Não é agradar o acompanhado sem ajudá-lo

Às vezes o acompanhante, por insegurança pessoal, busca ser simpático e agradar. Isso leva-o a estar centrado em si mesmo. Nossa responsabilidade é ser amável e acolhedor. Contudo, não podemos deixar de dizer o que vemos por temer que o outro se moleste e vá embora. Nalgumas situações temos que ser bons cirurgiões e questionar atitudes e comportamentos que pertencem ao que se chama de “área cega”, aspectos de nossa vida que não vemos, mas os outros conhecem. Se o acompanhado deixa de vir, não é, necessariamente, um fracasso. Pode ser um momento importante na vida desse homem ou dessa mulher. É possível que seja a ocasião de rebelar-se ou, então, de tomar consciência das dificuldades que carrega.

1.6 Não é ter resposta para tudo

Freqüentemente temos uma concepção autoritária onde exigimos controlar e saber tudo, o que nos tira a simplicidade e o frescor da vida. São tantas as coisas humanas e divinas que ignoramos e que precisamos aprender de outros!


II. QUE É ACOMPANHAMENTO? - VISÃO POSITIVA

2.1 Uma primeira aproximação nos é permitida por três textos do Novo Testamento que nos ajudam a compreender melhor em que consiste o acompanhamento.

a) Os discípulos de Emaús (Lc 24,13-35). O acompanhamento é o encontro entre caminhantes que vão partilhando histórias da vida, esperanças e frustrações. A gana de superar. Em meio ao desencanto cruza um caminhante que pergunta: o que estão conversando? No acompanhamento as perguntas são fundamentais: como estás? para onde vais? Também é fundamental a capacidade de receber, escutar e, posteriormente, esclarecer e ajudar a reler a realidade com olhos novos, para terminar celebrando.

b) O bom Pastor (Jo 10,1-16). O evangelista apresenta Jesus Cristo como acompanhante e mostra as características que o constituem mestre e discernidor de espíritos. Conhece as ovelhas, sabe o que são e onde vivem bem como aquilo que as motiva. Alimenta-as e dá-lhes de beber para que tenham vida. Sabe qual é o alimento que convém e onde está a fonte da qual brota a vida. Sara as feridas e sai para encontrar as que se perdem. O acompanhamento é uma experiência profundamente humana de aproximação, de conhecimento, de intercâmbio, de ternura na qual o acompanhado coloca sua história, seus sonhos e suas buscas nas mãos do acompanhante. O acompanhante não é um consultor. É necessário que dê sua vida pelas ovelhas. Acompanha e toma as dimensões mais profundas de nosso amor.

c) “Meus filhos, sofro novamente como dores de parto. Até que Cristo esteja formado em vocês. Gostaria de estar junto de vocês neste momento, e de mudar o tom de minha voz, porque não sei mais que atitude tomar com vocês” (Gal 4,19-20). Paulo não havia podido ajudar os gálatas a configurar-se com Cristo. Esta é a nossa tarefa: explicitar Cristo na história, na vida, nos sonhos de um homem ou de uma mulher, de modo que esta experiência de fé seja uma fonte de vida que impregne todo o agir do acompanhado.

2.2 O acompanhamento é uma experiência religiosa de encontro onde o acompanhado expõe o que está passando no hoje de sua vida para que, junto com o acompanhante, possa reconhecer quem é, o que quer e onde se encontra no caminho que o leva à adultez em Cristo.

Estes encontros caracterizam-se por serem periódicos e sistemáticos, já que não se pode discernir a vida e a obra do Espírito numa só vez. Requer-se tempo e percorrer distintas áreas da vida. O acompanhado tem que descobrir seu ser mais profundo e sua evolução, de modo que o acompanhante possa entrever sua realidade espiritual e seu mistério: como é que Deus está agindo nela ou nela?

No acompanhamento, o que importa é a pessoa, mais do que os problemas que ela apresenta: quem é a pessoa que tem dificuldades? Como vive ela os problemas? Que forças tem ela? Como é sua história espiritual? O acompanhamento sempre terá uma valorização do interpessoal como o lugar privilegiado de encontro e de descobrimento da realidade misteriosa do acompanhado. Vivemos na cultura da eficiência na resolução dos problemas e no oferecimento de luzes para que o outro vá adiante como possa. O “experto” centra-se nos problemas; o acompanhante na pessoa.

2.3 O acompanhamento é um lugar de graça, de verdade e de solidariedade fraternal.

O acompanhamento é um lugar da graça pelo intercâmbio de vida. Assim como o amor de Deus, passa mediado pelo carinho, pela compreensão, pela experiência e leitura nova que o acompanhado faz de sua vida. O acompanhamento nos liberta da solidão e do fechamento, fazendo-nos crescer em transparência. Chegamos a ser pessoas cheias de luz e de claridade, sinais delicados do amor de Deus e de sua graça salvadora.

Ao expor a vida aos olhos do acompanhante também crescemos em verdade e isso nos permite ver com seus olhos novos nossa própria vida. Ao partilhar com o outro, vejo com olhos novos o que vivo, o que sou, o que quero e saio da confusão e/ou do vago, que são caminhos que nos sugere o maligno. Somos peregrinos do começo ao fim, caminhantes, e quando fazemos o caminho sós, podemos cair facilmente nas mãos de assaltantes. No acompanhamento pomos a vida nas mãos do outro e vamos fazendo caminho juntos. Assim o outro pode refletir, comentar, discernir a obra de Deus e denunciar, indicar o mau espírito, o joio. Esta é um modo fraternal e solidário de percorrer o caminho.


III. ALGUMAS CONSEQÜENCIAS

3.1 O acompanhamento sempre será um cuidado de uma pessoa única que tem existência própria diante de Deus e na Igreja.

É o reflexo do amor personalizado de Deus a seu filho ou a sua filha. Esse amor passa pelo amor e pela compreensão do acompanhante; pela relação fraternal que pode estabelecer. Esta relação é completamente diferente em cada um. Isso exige uma flexibilidade e uma liberdade muito grande no acompanhante.

3.2 Precisamos ser acompanhados. É um direito de todo cristão.

Ninguém se salva sozinho. Dependemos uns dos outros. Não basta a inteligência para percorrer os caminhos do Evangelho. As trevas devem ser iluminadas desde fora, Ninguém é tão hábil que possa dar-se conta, por si mesmo, que está cego. Todos temos pontos cegos em nossa vida e, se não buscamos ajuda, estamos arriscando-nos a não chegar à maturidade em Cristo. Santa Teresa de Ávila presta conta de sua tarefa como acompanhante: “Eu não faço outra coisa do que evitar tudo o que possa obstruir, altear ou mudar o caminho pelo qual Deus leva as irmãs”.

3.3 O acompanhamento responde às necessidades de verdade e de honradez que moram no coração de cada pessoa.
Todos queremos ser honrados e viver na verdade, embora às vezes tenhamos temores em tomar contacto com a nossa profundidade e encontrar-nos com Deus. Atarefa do acompanhante é ajudar a essa pessoa a enfrentar-se. Por isso a prepara, a anima, a corrige e a ajuda a celebrar na medida em que vive com mais verdade e sabedoria.

3.4 O acompanhamento é uma arte, um carisma, um processo pedagógico

É uma arte que requer todas as nossas habilidades e experiências para intervir e para esperar, para reconhecer a obra de Deus. Requer tempo e esforço. Por isso podemos ajudar a poucos. É um carisma, um regalo de Deus para sua Igreja. É um serviço prestado ao santo povo de Deus. Ninguém pode fazer bravatas em matéria de acompanhamento. É um caminho pedagógico, um processo gradual que requer do acompanhante uma grande capacidade de escutar, acolher e deixar-se tocar pelo que o acompanhado é, não somente pelo que diz. Uma capacidade de olhar em profundidade, para reconhecer uma história santa, um caminho de salvação; uma capacidade de convidar a seguir a Cristo sem desfalecer.

3.5 Para acompanhar deve-se ter algumas convicções que nos permitem fazê-lo com maior fluidez e solidez

a) Toda pessoa é boa no profundo de seu ser. O núcleo de nosso ser é uma parte redimida e ressuscitada. O acompanhamento é buscar e tomar contato com esta área boa, salva e, a partir daí, refletir o bonito e o vital que vamos adivinhando.
b) Toda pessoa está em processo. Vai fazendo seu caminho e Deus vai trabalhando nele. Ninguém pode julgar, por si e por outros, que sua vida não tem solução. Os ritmos deste processo são diferentes e podem exigir, tanto do acompanhante como do acompanhado, paciência e perseverança.
c) Eu, como acompanhante, posso ter recursos, posso facilitar o caminho da perfeição cristã se ponho à disposição a força, a experiência, a bondade e os conhecimentos para serem uma ajuda significativa para a vida espiritual do acompanhado.

3.6 Todo processo de acompanhamento é temporal.

Podemos fazer caminho por um tempo, numa etapa da vida espiritual. Para a seguinte é possível necessitar de outra pessoa. É a experiência que tem Santa Teresa de Ávila e, também, Teresa dos Andes.

3.7 Cada acompanhante tem que revisar com honradez e discernir se é este o ministério para o qual Deus o chamou.

Não existem os diretores espirituais ideais. Por isso temos que perguntar-nos como integramos habilidades e dificuldades, necessidades da comunidade na qual participamos e a vontade da Igreja para convidar-nos a acompanhar a alguns de seus filhos.


IV. O ACOMPANHANTE, TESTEMUNHA DO AMOR DE DEUS

O acompanhante, mais do que um especialista em introspeção, é um especialista no agir de Deus. É quem sabe, por experiência própria e por experiência com outros, como a força do Espírito penetra e purifica as profundezas de nosso ser, fazendo-nos mais livres, mais disponíveis às moções de Deus. São Bento, um homem que soube da ciência de Deus e do coração dos homens, em sua Regra LVII, recomenda que aos postulantes se lhes assinale “um ancião apto para ganhar as almas, que velará por eles com a máxima atenção”.

O acompanhante deve ter sabedoria de ancião para saber dizer e reconhecer do que é capaz o coração do homem; tem que ser apto para servir e fazer-se próximo, para ganhar a alma do acompanhado e poder velas e cuidar dele com a máxima delicadeza. Na atualidade, a tarefa do acompanhante se associa mais a um trabalho de psicólogo, empobrecendo a realidade e a tarefa do acompanhante como um homem ou uma mulher testemunha do amor de Deus. Há muitas formas de acompanhar e isso depende tanto de quem acompanha como dos acompanhados. Não há uma maneira boa e outras más. Assim como não é o mesmo acompanhar a jovens ou adultos, religiosos ou casados.

4.1 Algumas tarefas específicas do acompanhante

O acompanhante é chamado a ser um mestre, com toda a beleza e toda a complexidade que isso acarreta. Cada um de nós tem características de mestre, porém custa-nos dar-nos conta disso. Julgamo-nos duramente e estes juízos nos levam à dúvida e à insegurança a respeito de nós mesmos. As tarefas de um mestre são:

a) Ser testemunha do desenvolvimento do acompanhado.

Toda pessoa precisa de alguém que seja capaz de olhá-lo em seu ser e de espelhar o que vê. O acompanhante busca e contempla no acompanhado como surge o homem e a mulher nova e adquire a maturidade em Cristo. É uma testemunha das consolações e desolações, de como a graça age de maneira única nesta pessoa, recriando-a .O acompanhante é um contemplativo da história vital de um irmão em seu encontro com Deus. É indispensável aprender a olhar longamente e isso nos custa. Somos homens e mulheres de juízo rápido: “isto é bom”, “aquilo é mau”. Custa dar-nos tempo e proximidade para discernir. Preferimos aplicar a inteligência para aconselhar.

b) Convidar à vida

É fundamental que o acompanhado se sinta convidado a viver, a conhecer-se de verdade, a querer com liberdade. Ele tem que descobrir a trama de sua vida, as motivações profundas que o levam a ser desta forma, suas habilidades e dificuldades, tanto na ordem intelectual como na ordem afetiva, no religioso etc. Convidar a continuar o caminho apesar dos cansaços e quedas, animar e robustecer os caminhos novos empreendidos. Como mora em nós esta capacidade de animar? Quando a exercemos? Com quem? Se na vida quotidiana não a praticamos, tampouco o faremos no acompanhamento.

c) Saber discernir

Discernir é reconhecer, distinguir, elucidar a maneira de como o Espírito de Deus age no acompanhado. É reconhecer nele o que há de verdadeiro, bom, bonito, e descobrir como o dinamismo de Deus age no coração do homem. Somente assim poderemos convidá-lo a ser fiel ao Espírito. Discernir o espírito de Deus e o espírito do maligno, vendo como se está dando a luta e o combate espiritual em nossos acompanhados, é fundamental. Às vezes acreditamos que são somente estorvos históricos ou psicológicos is que perturbam o crescimento e o amadurecimento de alguém.

Cada pessoa tem um caminho único, uma vocação completamente original. No acompanhamento deve sair à luz esta vocação, este estilo próprio de viver e de seguir a Jesus Cristo. Há tantas vocações como pessoas. Portanto, o discernimento é indispensável. O acompanhado faz o caminho, sendo fiel à orientação profunda de sua vida, ao dinamismo que Deus lhe dá. A tarefa do acompanhante é respeitar as decisões e escolhas que o acompanhado faz.

d) Poder ensinar

É a capacidade de ajudar o acompanhado a que se introduza no mistério de Deus e possa saborear e reconhecer as insinuações do Espírito. O acompanhante requer um certo corpo de conhecimentos de como Deus trabalha a história, o presente e o futuro de uma pessoa. Amiúde temos que sugerir meios adequados para abordar alguns momentos espirituais do acompanhado e para isso são necessários conhecimentos e esperiência pessoal. Que caminhos percorrer na purificação da alma? Convém a disciplina e a penitência?

e) Prescrever

Há momentos no processo do acompanhamento em que se faz necessário ordenar, mandar e decidir. O acompanhante tem que contribuir para a formação da consciência do acompanhado e, em certas ocasiões, é importante afirmar que isso ou aquilo não pode ser feito ou é necessário vivê-lo de forma diferente (condutas econômicas, sexuais etc.). A prescrição é muito importante em três situações: 1) com pessoas em estados depressivos; 2) nas áreas infantilizadas do acompanhado; 3) quando há desvios importantes ou ignorâncias intelectuais, morais ou religiosas. Nestas situações é indispensável prescrever. Para isso deve-se ter personalidade e autoridade: “vais fazer isso ou aquilo duas vezespor semana...”

Estas cinco tarefas do acompanhamento se alternam e se sucedem umas às outras. É conveniente avaliar como o acompanhante as desempenha, quando elas são feitas e a conveniência delas ao momento do acompanhado.

4.2 Características do acompanhante

Para desempenhar estas cinco tarefas é necessário que o acompanhante desenvolva três características espirituais que condicionam a forma de acompanhar.

a) Espírito de gratuidade.

Para ser acompanhante deve-se aprender a ser gratuito, deixar espaço para Deus Pai, para Jesus Cristo e para o Espírito para que seu amor trabalhe no acompanhado. O acompanhante não pode ser a pessoa central, nem tampouco pode sê-lo seu ritmo nem seu pensamento. Quando não sabe retirar-se, transforma-se num obstáculo mais que numa ajuda, num quebra-luz que perturba o encontro de Deus e o acompanhado. É indispensável ir além de toda possessividade. A gratuidade é aprender a não ter nada nem a ninguém. Saber fazer-se dispensável e superar toda dependência e imposição. “Só atrai quem deixa de ser o centro. Só ilumina quem chega a sr pura transparência. A vida divina se transmite quando eu diminuo”.

b) Espírito fraternal

O acompanhante é um companheiro de caminho do acompanhado, nem melhor nem superior. Somente distinto. É necessário saber, crer e viver que somente Deus é Pai e que nós somos todos irmãos. Nossa ajuda é uma função passageira para que o acompanhado chegue a ser mais livre, mais de Deus e dos homens, com a liberdade dos filhos de Deus.

c) Espírito de serviço

Na Igreja toda capacidade nos é dada para fazer dela um serviço de amor. “Aquele que a verdade fez livre, a caridad o faz escravo”, disse Santo Agostinho. Precisamos evangelizar nossas habilidades para não considerar-nos superiores mas como bens a partilhar, uma dívida que temos que saldar com nossos irmãos. São os dons os que nos fazem pequenos.

O acompanhamento é um serviço delicado. É o serviço da com-paixão, de viver com o acompanhado os altos e os baixos de sua vida; é o serviço da paciência, enquanto o acompanhado adquire sensibilidade e gosto pela obra de Deus e toma consciência desta realidade nova e delicada de como Deus age; é o serviço da ternura de Deus para com os homens, de forma que o acompanhado se sinta querido e cuidado com força e delicadeza.

4.3 Alguns requisitos para o acompanhante

a) Ser uma pessoa verdadeira e coerente

É preciso cuidar que não haja uma grande distância entre o que se pensa, o que se diz, se sente e se crê. Esta coerência é que dá peso ao acompanhante e confiabilidade. É preciso ter consciência das condições próprias e dos limites, sem que isso tire a liberdade para convidar o acompanhado a ir mais além no caminho espiritual. Não se exige ser perfeito para ser um acompanhante, mas ser um peregrino.

b) Conhecer, assumir e exercer suas habilidades

É muito importante ter consciência e gozar das habilidades que Deus nos deu e que podemos cultivar e exercer. Há algumas habilidades indispensáveis para o processo de acompanhamento. 1) Capacidade de escuta. Não somente com o ouvido mas com o coração. Isto é permitir que aquilo que o acompanhado diga e seja, entre no meu interior e toque meu próprio mistério. Não é somente receber, pôr-se passivamente diante do outro, mas acolher ativamente o que diz e o que não sabe dizer ou não se atreve a dizer. É estar atento, constantemente, a todo seu corpo e sus gestos que vão dizendo o que é o que vive, seus desejos s temores. Por isso acompanhar cansa emocionalmente. 2) Capacidade de entrar no mundo do outro e, assim, desentranhar sua riqueza. Entra-se e se segue o outro no seu processo interior. É o que se chama de “empatia”. Para isso é importante aprender a perguntar com perguntas que abrem o campo, aprender a refletir o que vemos e entendemos, aprender e partilhar alguns comentários que brotam de nossa profundeza. 3) Capacidade para conter e acolher o conteúdo emocional que o acompanhado traz: aflições, anseios, raivas, desencantos, entusiasmos. Às vezes é necessário pôr limites à descarga emocional para que se possa compreender de maneira nova vivências intensas. 4) Capacidade para crer nas próprias intenções. É crer que o Espírito Santo trabalha, também, o coração do acompanhante e suscita nele intuições e formas de ler o que o acompanhado está vivendo que, ao partilhá-las, o constituem recurso e testemunha da obra de Deus. Às vezes são perguntas, comentários, imagens ou vem à memória textos bíblicos que iluminam a realidade e que tem sua origem em nossa profundidade. 5) Capacidade de ser paciente e saber esperar. “Os meus tempos não são os tempos do outro”. Requer-se respeitar a liberdade do outro para que percorra os caminhos no ritmo que pode e quer fazê-lo. É necessário aprender a guardar silêncio e a estar confuso. Isso custa muito já que quereríamos dirigir e controlar os distintos momentos de nossa própria vida e da vida dos demais.

c) Aprender a ser livre de si mesmo

Deve-se decidir ir além de minhas preocupações, de meus temos, de meus apuros. Eles me tiram força e presença. Se conto com 45 minutos para um acompanhado, é necessário que esteja completamnte para eles.Não posso estar pensando no que vou fazer logo depois ou refletir sobre o que vivi anteriormente. Uma das liberdades importantes que devemos ter é o da nossa curiosidade. Ela faz centrar-nos em nós mesmos, já que as intervenções que fazemos estão a serviço de nosso interesse próprio. Buscamos comparar com o que somos ou temos vivido, queremos saber como o outro viveu ou se defrontou com algumas dificuldades que nós também tivemos.

d) Cuidar para ter uma visão global

O acompanhado traz um problema, uma pergunta, uma experiência espiritual. Uma tentação do acompanhante é permanecer neste ponto, sem formar uma idéia mais completa de tudo que a pessoa está vivendo simultaneamente, de maneira a poder contextualizar a pergunta, o problema, etc. Não podemos ficar em aspectos parciais da vivência de uma pessoa. Temos obrigação e direito de situar-nos. Às vezes, por timidez, o acompanhado vai colocando detalhes, deixando de lado o que realmente o preocupa, e no final não sobra tempo para o importante.





V. O ACOMPANHADO, UM FILHO, UM CAMINHANTE

O acompanhado é um irmão nosso que busca ser ajudado por nós para viver mais e melhor sua vocação cristã. Busca seguir a Cristo mais estritamente e para isso tem que aprender a percorrer o caminho das Bem-Aventuranças, a viver o preceito da caridade e chegar à Paixão, expressão mais forte de um amor gratuito. Trata-se de acompanhá-lo em seus desejos de ser verdadeiro e livre diante de Deus, para estar disponível às moções do Espírito e pronto para o serviço do Reino. Para assegurar o processo, é necessário estabelecer algumas condições ao partir:

a) É necessário explicitar a motivação que o faz pedir ajuda. Ao longo do acompanhamento é necessário ir perguntando: que buscas?, de forma que vá formulando seu desejo mais profundo. Amiúde busca-se ser acompanhado em dificuldades momentâneas ou em problemas afetivos, mas, lentamente, é necessário dar passos para que este homem ou esta mulher aprenda a pôr-se diante de Deus, vulnerável, nu, plenamente humano, para assim poder ser seduzido pelo amor de Deus. Enquanto o acompanhado se mantém na defensiva, controlando sua vida, poderá conversar, meditar, trabalhar os mistérios da vida de Cristo, mas sem ter sido tocado profundamente por Ele.

b) É necessário pôr-se na situação do acompanhado. Permitir que o outro seja testemunha de minha vida para que eu possa pssar do entrevisto e do desejado para o vivido e o real. Pedir ser acompanhado é permitir que o acompanhante conheça minhas alegrias e meus entraves para viver, minhas buscas, meus temores e resistências ao amor de Deus. A muitos, este entrar na intimidade, os assusta. Custa-lhes que o conheçam em sua beleza, em sua delicadez, em sua experiência de Deus já que se fazem vulneráveis à visão e ao reconhecimento do outro.

c) As confusões do acompanhado resultam, amiudadamente, do medo de entrar em si, de não saber ir mais fundo e encontrar a raiz de seus atos, de seus medos e dores. O acompanhado vem para que o acompanhante o ajude a “entrar em si”, como o filho pródigo.

d) Requer-se que o acompanhado prepare sua reunião com o acompanhante. Rezar por ele e pelo acompanhante para poder fazer uma experiência religiosa verdadeira; escolher aquilo em que necessita ser acompanhado e - se pode - preparar algumas notas por escrito. Isso exige rigor e tempo (O que consegui nesta área? O que me preocupa atualmente? O que quero viver? Que obstáculos encontro?)

e) É fundamental que o acompanhado se disponha a partilhar o próprio com verdade e a acolher o que o acompanhante propõe. Isso se reconhece não somente nas palavras mas na linguagem não-verbal: olhos, ombros, rosto; na fluidez do relato, na força emocional usada ou retida.

f) Algumas áreas que, ao longo do processo de acompanhamento, não podem faltar: vida de oração, vida comunitária, vida apostólica, vida sacramental, estudos, família, afetividade e sexualidade, projeto pessoal, absoluto de Deus, manejo do dinheiro.

g) É necessário que o acompanhado possa chegar, ao longo do processo de acompanhamento: a decifrar sua história o sentido dela como uma história de salvação; a aceitar viver com seu corpo, suas possibilidades e limites (realidade familiar, eclesial, trabalhista e social); a reconhecer as motivações de seus atos, distintas das que ele cria; a estar disponível para servir a Igreja onde o Espírito sugerir e a Igreja necessitar. Quando se aceita a verdade de si mesmo e o amor inesgotável de Deus, começa-se a ser livre com os outros e livre para Deus.

h) O acompanhado tem que assumir três vocações fundamentais: a vocação à vida, a vocação à fé e a vocação à transcendência.

i) Ajuda o desenvolvimento espiritual do acompanhado o fato de ele avaliar tanto as reuniões como o caminho percorrido ao longo do tempo. Que luzes recebi? Que ações quero e posso realizar? Estou em paz com o encontro? Pde ajudar, também, o texto de Gálatas 5,22-23. Como se desenvolveu em mim a caridade, a alegria, a fé, a mansidão, a temperança?


VI. ALGUMAS NOTAS COMPLEMENTARES

a) Duração das sessões. É recomendável que as sessões não demorem mais de uma hora. O verdadeiro sempre é curto e intenso. As sessões mais longas são cansativas e tendem a transformar-se num encontro social.
b) Periodicidade das sessões. Não há normas, mas a multiplicação de encontros pode chegar a produzir dependência. Um tempo adequado é cada três semanas ou uma vez por mês.
c) É necessário estar atento, no processo de acompanhamento, às relações de dependência mútua, ao voluntarismo espiritual que consiste em pôr o esforço pessoal em primeiro lugar, ao sobrenaturalismo que consiste em pensar que tudo é graça e espontaneidade, à vaguidade e à teoria, ficando-se em generalidades, à simplificação e à busca de receitas, ao perfeccionismo que é uma forma de insegurança que enrijece, aos escrúpulos e culpabilidades enfermas que são formas de obsessão.

O acompanhamento é a arte das artes, escola de liberdade para os que buscam com ansiedade o Senhor e querem servir aos homens como merecem ser servidos. Santo Agostinho empresta-nos suas palavras para explicar, finalmente, o resultado de um processo pedagógico de acompanhamento: “Tarde te amei, formosura tão antiga e tão nova, tarde te amei. Tu estavas dentro de mim e eu fora, e - assim por fora - te buscava. Disforme como era, lançava-me sobre as coisas formosas que tu criaste. Tu estavas comigo e eu não estava contigo. Chamaste-me e gritaste até quebrar minha surdez, brilhaste e resplandeceste e curaste minha cegueira, exalaste teu perfume, aspirei-o e agora te desejo, gostei de ti e agora sinto fome e sede de ti, me tocaste e desejei ansiosamente a paz que procede de ti”.
Pe. Alvaro González

CARACTERÍSTICAS IMPORTANTES DA PEDAGOGIA DE JESUS PARA UMA EVANGELIZAÇÃO DA JUVENTUDE

1. A Evangelização da Juventude, assim como Jesus, assume a defesa do protagonismo juvenil, assumindo a personalização como elemento-chave para a afirmação do jovem.

O jovem ser protagonista significa dizer que estamos frente a um jovem (ou desejamos estar frente a um jovem) que luta para ser sujeito de sua identidade e de sua organização, como pessoa e como grupo. Na vivência do protagonismo, o jovem é respeitado na descoberta de si mesmo tomando contato, primeiramente, com o mais próximo de si: ele mesmo. O jovem é alguém que busca sua identidade. É claro que para afirmar essa “identidade” vai negar submissões. Podemos até dizer que pode ser teológico negar leis, autoridades e dominações. Qualquer relação que leva à dependência ou defende a dependência, é uma relação infantil. Descobrir a identidade não é só descobrir a si mesmo; é, também, descobrir o outro, naquilo que é e deveria ser. Estamos frente a uma Teologia da saída de um mundo de dependência para um mundo de identidade. De um mundo fechado sobre si para abrir-se às relações, sem perder sua identidade. Assim como o Êxodo, a juventude é uma epopéia da busca e da conquista. O jovem que não sai de si (do Egito) e não busca mover-se nas relações, é alguém que está marcado a não encontrar-se no protagonismo para o qual foi feito.

Os exemplos na vida de Jesus podem ser encontrados em Marcos 5,21-43 que nos conta como o chefe da sinagoga vai pedindo a Jesus que venha curar sua “filhinha” doente; em Marcos 9, 14-29 onde se encontra a história do menino epiléptico ou em Lucas (7, 11-17), narrando-nos a história do filho único da viúva. Nestes momentos, como em outros, o que Jesus vai repetindo sempre é “Menino, menina, levanta-te”... Seja tu mesmo/a. Saia deste mundo dependente. Seja tu mesmo/a.

Conseqüências desta característica: a) a busca de uma boa organização; b) a importância de trabalharmos bem a personalização, isto é, ajudar o jovem a que se ame e que tenha uma forte auto-estima.

2. A Evangelização da Juventude, assim como Jesus foi e é amigo, assume a socialização como parte de sua pedagogia.

A Evangelização da Juventude – melhor, a comunidade juvenil, é e deveria ser o lugar da felicidade do jovem. Os que tiveram esta experiência na vivência eclesial não se esquecem, jamais, que foi no grupo que tiveram um encontro divino com a felicidade. Jesus, na sua permanência na história, também trabalhou com uma pequena comunidade. Os discípulos, os apóstolos... Jesus assume em sua pedagogia, a defesa da socialização. O jovem é alguém que aprende a ser amigo como jovem e não como criança. Intui em sua intimidade que todos, no mundo, deveriam ser amigos e que a inimizade não tem lógica no mundo que vai aprendendo a viver.. A amizade é uma descoberta radical, nascida do cotidiano. O jovem tem medo da solidão. E como sofre por sentir-se traído! Quando queremos dizer uma coisa muito boa de alguém dizemos que “ele é nosso amigo”.... A amizade é a vivência mais terna de sairmos de nós mesmos e deixar que o outro penetre em nossos poros. Vive-se a amizade não para tirar proveito. A amizade coloca-se na geografia do gratuito. A amizade é anterior, inclusive, ao sexo. A vivência de uma amizade é algo prazeroso, que não tem palavras. Damo-nos conta que Deus faz que a descoberta do outro seja agradável, apaixonante e gratuita. Aí surge a poesia, o romantismo, a vontade de “ficar”, as ganas de olhar nos olhos do outro/a e namorar. O jovem, à semelhança de Deus, é um enamorado.

Por isso Jesus ama as pessoas como elas são. Ama a todos e todas. Inclusive os ricos com os quais não deixa de ser sincero e duro. Em todas e todos é capaz de ver que podem ser mais e melhores. Até para Judas, que o traiu, ele diz: “Amigo, a que vieste?” (Mateus, 26,50). Jesus, mais adiante, vai dizer em tom de despedida: “Já não os chamo de servos, mas de amigos...” (João 15,15). Que coisa linda ver Jesus chorando a morte de seu amigo Lázaro. E todos diziam: “Vejam como ele o amava...”(João, 11,36)

Conseqüências desta característica: a) a socialização e o clima de amizade no grupo e na comunidade; b) a importância do grupo; c) a descoberta dos outros no que são; d) o papel fundamental da revisão de vida.

3. Para Jesus e, por isso, para a Evangelização da Juventude, e para jovem, a vida é uma festa.

O jovem encarna a juventude da Igreja no mundo. Para o jovem a vida é uma festa. Tudo é festa. A festa é encontro, é prazer, é sentido. A festa é memória. Onde há juventude há alegria e celebração. Por isso a Pastoral da Juventude é a pastoral da alegria. Os jovens são os celebrantes do mundo... Por vocação e por biologia... Onde Jesus fez seu primeiro milagre? Nas bodas de Caná da Galiléia, por intervenção de sua mãe. Na festa de um casamento, fazendo que a celebração não fosse somente de água, sem sentido, mas de vinho, carregada de alegria. Por que Jesus era tão romântico e tão poeta frente à natureza? Porque para Ele a criação e a sociedade humana foram criadas para serem festa. Uma festa supõe três elementos: a valorização de determinados acontecimentos, a expressão significativa e a inter-comunhão solidária. Não há festa se o evento é uma manifestação do vazio, quando o evento quer ser a afirmação de poder, e quando a festa não é gratuita, com aspectos de “circo” de apresentação ou instrumento com outros interesses.

A vida para o jovem é festa porque vive a explosão sexual e afetiva. Esta é um “kairós”, um momento decisivo como graça de Deus. Descobrir a vida, a beleza de uma paisagem é uma alegria enorme. Descobrir-se jovem, sexuado, capaz de ser vida não poderia deixar de ser uma festa. Jesus foi acusado de participar nas ceias e nos banquetes de amigos, foi acusado porque era amigo de Marta, Maria e Lázaro. Jesus celebrou sua despedida numa ceia. Temos um coração eucarístico porque sabemos que a melhor festa é a que é gratuita e plena. A ceia do Senhor... A festa da Vida...

Conseqüências desta característica: a) uma Evangelização da Juventude criativa e alegre; b) uma Evangelização da Juventude eucarística e celebrativa; c) uma Evangelização da Juventude capaz de celebrar todas as realidades, também o estudo, também o trabalho, também a idade que vivemos, também a natureza na qual trabalhamos, tudo.

4. Jesus agiu e viveu a causa do Reino com um pequeno grupo e, por isso, para a Evangelização da Juventude o grupo é a proposta central da proposta evangelizadora.

Não podemos negar que Jesus foi essencialmente comunitário. Jesus acreditou no coletivo. O Reino que pregou é uma comunidade. Não realizou sua missão isoladamente. Desde o início de sua vida pública enviou os discípulos para diversas cidades e aldeias. Foi aos discípulos que Ele explicava as parábolas. Foi com poucos que Ele subiu o Tabor. Jesus é e foi comunitário. Aprendemos dEle que o grupo é uma necessidade biológica, psicológica e teológica. O jovem, como qualquer pessoa, tem uma necessidade violenta do grupo, de viver em grupo. Somos felizes no grupo. A noite é a grande acolhedora do espírito grupal do jovem. Qualquer cidade tem lugares onde os jovens se encontram. Dizemos nós que é para namorar, para fumar maconha... Porém, esta é a parte mesquinha de uma realidade que devemos aprender a ver e a aprofundar. O jovem quer uma Igreja que seja comunidade, que planeje sua ação, que faça assembléias e congressos... A pastoral se torna e deve tornar-se construtora de comunidades. “Ide pelo mundo.... Construam todas as comunidades possíveis.... Sejam organizados e políticos”. Deus não nos quer desorganizados. Deus não quer ver-nos como uma “massa”. Deus quer ver-nos como povo. Ao jovem agrada-lhe viajar, conhecer outros mundos; agrada-lhe escrever e receber cartas de regiões distantes. O jovem sonha conhecer o mundo que lhe pertence. Não lhe agradam as fronteiras, nem a religião. Ele é essencialmente ecumênico, perdoando facilmente. Não olha se é bonito ou fio. Não existem barreiras. O jovem é comunitário.





Conseqüências desta característica: a) O grupo. O grupo tem objetivos e planejamento; b) superar o espontaneísmo; c) a Evangelização da Juventude tem sentido se tem grupos que se encontram; d) é fundamental que os grupos estejam inseridos em suas realidades, envolvendo-se nos organismos intermediários da sociedade civil.


5. A Evangelização da Juventude e o jovem sonham com a fidelidade porque, assim como Jesus, assim como Deus, é fiel.

A fidelidade que somos convidados a viver, neste momento, no Brasil e na América Latina, é a fidelidade à proposta pedagógica e teológica que descobrimos e sistematizamos. É muito mais que uma obediência a uma lei. Trata-se de uma proposta de felicidade, assumida de verdade em nossas vidas de pessoas, de grupos e de pastoral. Trata-se de uma fidelidade a uma causa. Assim como Jesus não se cansava de dizer que seu alimento era fazer a vontade do Pai não devemos cansar-nos de dizer, como Pastoral da Juventude, que queremos ser fiéis, que queremos viver a aliança que Deus fez com o jovem e que isso supõe compromisso e coerência.

E por que a fidelidade é importante? O outro não é um joguete nem um objeto que se usa e se tira fora. A fidelidade é sagrada. O jovem intui que o grupo, a família, a nação e a paz não são possíveis se não houver fidelidade. A corrupção nos enoja porque é uma infidelidade. O jovem pode, até discordar de aspectos secundários porém dobrar-se-á ante a sinceridade transparente de uma pessoa. O que Deus e Jesus e a Pastoral da Juventude abominam é a hipocrisia. Os discursos mais violentos de Jesus são contra a falsidade.

Conseqüências desta característica: a) a proposta não é uma mercadoria; ela é uma causa. A Evangelização da Juventude perde a confiança e o respeito na medida em que desconhece sua proposta; b) a Evangelização da Juventude existe para ajudar o jovem a construir seu projeto de vida. A grande pergunta que todo jovem se faz é: “Que queres, Senhor, que eu faça? Onde está o país de minha felicidade?” c) É preciso que o grupo seja exigente. O grupo não é uma brincadeira; é o ninho da felicidade juvenil.


6. Assim como para Jesus, toca à Evangelização da Juventude descobrir e desvelar a missão, inclusive a missão de ser profeta.

Jesus, filho de Deus, Verbo encarnado, teve que descobrir sua identidade e sua forma de exercer a missão que lhe tocava. Por isso, ao iniciar sua vida pública, passa um tempo no deserto; por isso, para que fosse sempre coerente ao projetor libertador de felicidade da humanidade, nos grandes momentos de decisão e de dúvida se retirava para o monte para rezar... Nós rezamos para descobrir por onde anda a nossa felicidade... Nós rezamos porque queremos descobrir o caminho. O jovem necessita ser orante porque para ele tudo é novidade. Como ser filho? O que é uma autoridade? O que é namorar? O que é ser corpo? Por isso é preciso rezar. Como é a sociedade na qual vivemos? Por isso é preciso ler jornais, fazer análises de conjuntura. O que é ser cidadão? Jesus passou 30 anos observando a sociedade e passava noites inteiras em oração... O cidadão, o construtor de comunidades, o celebrante do mundo, o profeta da causa dos excluídos não nasce por acaso. O jovem é um “joão ninguém” que deve aprender a afirmar-se às custas de seus próprios descobrimentos. Um bom assessor, assim como um bom pai, é aquele que sabe ajudar nesse processo de autonomia progressiva. Diríamos, até, que o Deus da juventude é o Espírito Santo. Ele, além de ser paixão, dinamismo e afeto, faz ver, desvela e manifesta. Assim como estamos entrando na “era do Espírito” vamos entrando, também, na “era da juventude”.

Conseqüências desta característica: a) Urge uma Evangelização da Juventude criativa e mística, uma Evangelização que seja capaz de ler os sinais dos tempos e de inspirar-se, sempre mais, na Fonte da Vida, que é Deus, que é o Evangelho; b) Urgem momentos em que façamos com muita seriedade análises de conjuntura; c) Urge uma Evangelização da Juventude sempre mais próxima da Bíblia e da oração. Caso contrário, não seremos os profetas que o mundo precisa.

7. Assim como Jesus ensina e vive a doação, assim a Evangelização da Juventude do momento atual tem ânsias por uma organização capaz de generosa e gratuita doação.

Jesus de Nazaré foi claro: “Se o grão de trigo não morre, não produz frutos”... “Se pões a mão nalgum compromisso e olhas para trás para ver ao que renunciaste, não és digno do Reino...” “Se não fores capaz de deixar a mãe, tuas pequenas coisas por amor à causa esquece-te e volta à infelicidade que escolheste...” Na noite da Ceia Jesus lavou os pés dos discípulos dizendo-lhes em palavras e atitudes que o que dá vida ao mundo é o espírito de serviço. Jesus não guarda nada para si. “Tomai e comei! Isto é meu corpo... Eu dou minha vida pelo mundo e a dou porque assim o quero”. Amou até o fim.

Assim é o jovem. Em cada corpo juvenil tem morada especial a Eucaristia, a generosidade, o idealismo. Uma Evangelização da Juventude sem Eucaristia não consegue sonhar nem a curto nem a longo prazo. Uma Evangelização da Juventude sem Eucaristia perde seu espírito solidário e seria melhor que não existisse. Aprendemos isso de Jesus. O Caminho é Ele. A Civilização do Amor se alimenta da Eucaristia.

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Ciclo de debate sobre Juventudes e Políticas Públicas


Nos últimos anos a temática da Juventude tem produzido estudos, debates e produções. Sempre temos uma opinião sobre o assunto. Como afirma Groppo (2000) “juventude tornar-se, ao mesmo tempo, uma representação sociocultural e uma situação social”. Faz-se pertinente considerar a sua existência na realidade e no cotidiano, com seus diversos grupos sociais e sua pluralidade.

Os estudos, as problematizações e a busca de respostas para as questões juvenis, no mundo contemporâneo, contribui na formulação de políticas públicas para juventude.

Nós da Trilha Cidadã queremos convidar você a juntar-se com a gente e construir debate sobre: Juventudes e Políticas Públicas.

Aguardamos cada um e cada uma com um bom chimarrão!



Atenciosamente

Fabiane Asquidamini

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

QUEM ÉS, JESUS DE NAZARÉ?

1. Resumo de sua vida

Foi no tempo de Tibério, imperador romano do 1º século de nossa era. Num lar insignificante do Império (Palestina) fez irrupção, na vida pública, um artesão sem importância. Durante toda a sua vida tinha sido um trabalhador e continuou com este mesmo aspecto nos poucos dias que ainda viveu. Semeou uma grande inquietude religiosa em todo o âmbito social do país, com palavras e com uma vida cheia de amor. “Quem é este homem?” perguntavam-se uns aos outros (Mc 4,41). As autoridades religiosas do país, no entanto, unidas à força dos ocupantes romanos, levaram-no à morte. A morte, no entanto, não foi o fim de sua história. Os discípulos começaram a falar dele e empenhavam-se em dizer que ele estava vivo. Mais do que isso: diziam que estava no meio deles. Que ele era o centro da vida de todos os homens.

O mais estranho, contudo, não foi que começassem a falar. O mais estranho foi que davam a sua vida pelo que pregavam. Melhor, por aquele que pregavam. Refletiam, sem suas vidas, da melhor forma possível, a vida do homem que seguiam. Isso ia ajuntando muita gente, não só judia, mas de todas as partes do Império. Geralmente eram pessoas simples nas quais se davam transformações que não deixavam de chamar a atenção. A vida daqueles homens e mulheres era uma continuação da vida do seu Mestre. Afirmavam que não se tratava somente de uma imitação, mas que Ele vivia e se reproduzia neles. Daí em diante o mundo não pôde mais prescindir daquele homem. Ou se era a favor ou contra... É um personagem com o qual se deve contar. Os cristãos diziam que a passagem daquele homem foi o momento decisivo na história da humanidade e que o segue sendo hoje porque Ele está vivo.

Nenhum homem, nenhum fundador de religião teve semelhante pretensão. Nós, os que nos dizemos seguidores seus, devemos voltar constantemente para Ele. Recordemos, pois, alguns dados fundamentais.

2. Contexto

a) Jesus nasceu num povo teocrático, que se formou e vive da esperança do Messias, o Salvador. Socialmente é um povo de agricultores, pastores e artesãos. É um povo fortemente nacionalista. Conserva seu caráter judeu, mesmo em meio aos sofrimentos da diáspora.

b) No momento em que Jesus aparece, o país constitui uma espécie de colônia romana. A ocupação é, em geral, inimiga. Contentam-se em cobrar o tributo, respeitando a identidade religiosa dos israelitas. O povo, contudo, não aceita estas condições e odeia os ocupantes.

c) Desde sempre, no povo de Israel, o religioso e o político estão unidos. Naquele momento (no tempo de Jesus) o país estava cheio de uma multidão de seitas, partidos e grupos de caráter político-religioso. Os saduceus constituíam o grupo aristocrático e rico do país (inclusive os sacerdotes). Os proprietários rurais estavam aí. Ocupavam os altos postos da administração judaica. Os fariseus eram os estritos cumpridores da lei, mas viviam uma moral formalista e legalista. Evitavam a todo custo as impurezas legais. Por sua fidelidade externa consideravam-se superiores e desprezavam os demais. Fixavam-se em seus méritos pessoais para obter a salvação. Os escribas eram os entendidos na lei. A maioria dos fariseus eram escribas ou doutores que se dedicavam à aplicação da lei nas sinagogas. Uns e outros eram ferozmente nacionalistas. Com relação aos ocupantes, no entanto, tomavam uma postura de gente educada. Eram conservadores. Era lógico, por isso, que, neste panorama, as esperanças messiânicas se centralizassem no político e no religioso. O Messias castigará os outros povos, pondo-os sob o poder de Israel. Como inimigos, terão destruídos seus ídolos .

d) Todo o contexto ambiental do Evangelho se apresenta cheio de uma vida típica do Oriente. Jesus aparece no meio deste mundo concreto e todos estranham a sua pessoa, as suas palavras e as suas ações. A vida de Jesus apresenta-se neste contexto, de uma intensidade especial.

3. Os dados fundamentais da atuação de Jesus e de sua personalidade

3.1 Porte exterior e estilo de vida

Jesus se apresenta como um “qualquer” de seus conterrâneos (Fl 2,7). Foi muito mais identificado com os de sua idade e região do que João Batista. Deve-se, por isso, pensar no seu porte simples e atraente considerando a exclamação de uma mulher no meio da multidão (Lc 11,27). Ao julgar pelos dados do Evangelho, devia ser robusto. As pessoas o procuravam tanto que não o deixavam comer (Mc 6,31). As discussões com os fariseus eram compridas (Jo 8,1s). Tinha a capacidade de estar em qualquer lugar, de dia ou de noite.

Após um período completamente oculto, sua vida se parece à vida do profeta, missionário itinerante, que vai de cidade em cidade. Anda errante pelos lugares de seu país, às vezes sem ter nem onde dormir, como Ele mesmo dirá (Mt 8,20). Tem, sim, amigos que o acolhem em sua casa. Acode a eles de vez em quando. Tem, também, pessoas que o atendem materialmente.

Jesus é um homem do povo, embora seja profeta e mais do que profeta. Já desde sua origem nasce numa pobreza extrema. Jesus nasce inserido num mundo pobre e nele se educa. Nunca desertará de tal condição. Operário, em seus anos de Nazaré, mantém-se, por toda a vida, num contexto sociológico popular.

A maior parte das vezes caminha rodeado de grande número de pessoas, quase todas pobres, enfermas, pecadoras, gente esquiva e desprezada pela sociedade. Jesus sente-se à vontade na companhia delas. Não foge do trato com eles. É um homem do povo, de todos e para todos (Lc 12,1). Não é, pois, um personagem lendário. É amigo da natureza. Suas comparações são quadros vivos, tomados da realidade (Mt 6,25s). Sua aparição em público produz o impacto de uma inesperada irrupção. Os próprios parentes se envergonham dele e afirmam que perdeu o juízo (Mc 3,21). O povo, contudo, segue-O com entusiasmo.

3.2 Condição de Mestre e Profeta

O estilo de vida de Cristo assemelha-se ao “Mestre”. Os “mestres” explicavam as Escrituras, os livros sagrados do povo de Israel. Ele também se serve, algumas vezes, das Escrituras como ponto de partida de suas explicações. Fala, porém, desde dentro, isto é, a partir do interior de si mesmo.

É um “profeta”. Os profetas anunciam o Reino de Deus por parte de Javé. Interpretam (encontram o sentido profundo) os fatos da história. Jesus é como eles, porém mais do que eles. Não precisava garantir sua missão dizendo “assim fala Javé”. Fala como quem tem autoridade e se coloca acima do próprio Moisés, de Abraão e, até, por cima da lei como tal. “Ouvistes o que foi dito aos antepassados: não matarás e aquele que matar será réu ante o tribunal. Pois bem: EU vos digo...” (Mt 5,21).

Sua forma de falar é um dos aspectos que mais chama a atenção desde o primeiro momento. Ao chegar em Cafarnaum, entrou na sinagoga e se pôs a ensinar e ficaram admirados de sua doutrina porque ensinava como quem tem autoridade e não como os escribas (Mt 7, 28-29). Merece destacar-se o realismo de sua linguagem, próprias de um homem do povo. Fala do padeiro que remexe a massa; da mulher que não pára de varrer até encontrar a moeda perdida. Sua forma de falar é simples e pitoresca. Entende-o o mais rude camponês que o escuta. “Ninguém acende uma luz para po-la debaixo da mesa. Pois bem, vós sois a luz do mundo (Mt 5,13-16). “Não se pode pôr um vinho novo em odres velhos” (Mc 2,22).

É hábil, na sua simplicidade, para resolver as dificuldades. Basta recordar a pergunta sobre o tributo a César (Lc 20,20-26). Além de toda a sutileza, Ele foi claro, direto e simples. Soube falar sem enfeites e suas terríveis diatribes e recomendou a clareza, a simplicidade e a sinceridade. O que mais chama a atenção, em sua linguagem, é a energia e a penetração. Geralmente usa sentenças breves. Resume, numa pequena frase, o ensinamento da parábola. Muitas vezes estas sentenças são de conteúdo evidente e, até, desconcertante. São sentenças profundas e exigentes. “Não vim trazer a paz mas a espada” (Mt 10,34). “Não vim chamar os justos, mas os pecadores” (Mt 9,13). É um linguajar ardente e poderoso. Não podemos, contudo, deixar de destacar a sua ternura, a sua poesia e a profundidade de seus discursos mais compridos. Basta evocar o Sermão da Montanha (Mt 5,1-7,27) ou a parábola do filho pródigo (Lc 15,11-32). Não é de estranhar que os guardas, encarregados de prendê-lo, voltem com as mãos vazias e se desculpem dizendo: “Nunca um homem falou como este”(Jo 7,46).

4. O mundo interior de Jesus

4.1 Liberdade absoluta

Jesus é um homem livre diante de todos e sobre todos. É livre frente às pessoas e livre frente às instituições e costumes de seu tempo. É livre diante de si mesmo. É o primeiro aspecto que chama a atenção quando se lança um olhar atento à sua vida e ao seu modo de agir.

A autoridade que sai de sua pessoa, sua decisão no cumprimento de sua tarefa, sua firmeza, sua atitude crítica frente a todo tipo de injustiça e de mal, tudo isso nos revela um interior soberanamente livre, dono de si. Seu linguajar cheio de autoridade saberá ir além das tradições e das preocupações dos chefes religiosos do povo. Essa liberdade manifesta-se, igualmente, perante sua mãe e seus parentes: “Quem é minha mãe e quem são meus irmãos?” (Mt 12, 48).

Jesus é um homem livre ante as riquezas. Não as despreza, porém toma cuidado. Sabe que podem ser um risco, impedindo o Reino de Deus que está no mais pessoal do homem. Exigirá de seus discípulos a superação de toda preocupação pelo dinheiro. Quer pobreza, de fato (Mt 5,3; Mt 6,19-21; Lc 12,22-34; Mt 6,24s; Lc 9,59).

Jesus é um homem livre ante a autoridade. Acata a autoridade, em princípio, porém sem os típicos servilismos daquele tempo e de todos os tempos. Ante os governantes conserva a consciência própria de sua dignidade. Ante Herodes, que tinha curiosidade em conhecê-lo, Jesus mantém uma atitude digna, inclusive de despeito. Em outra ocasião Jesus havia chamado a Herodes de raposa (Lc 13,32). Frente às autoridades religiosas Jesus mostra-se igualmente livre e as enfrenta na sua hipocrisia na interpretação da lei e na imposição de cargas pesadas ao povo (Mt 23, 1s).

Jesus é um homem livre ante a lei religiosa e civil de seu povo. Cumpre-a, porém, superando-a e pondo, por cima dela, o amor. É livre ante o jejum (Mc 2,18s); é livre ante o templo, centro da vida religiosa e política do povo; é livre ante a tradição de lavar as mãos para comer (uma lei quase sagrada...)(Mc 7,3; M 15,20).

É uma liberdade interior que o levará a passar por cima de sua própria vida. Não teme perdê-la. Supera o temor da morte e vai livremente ao encontro dela. Aceita a morte livremente quando descobre que tal é o seu caminho. João põe em sua boa estas palavras: “Ninguém me tira a vida; eu a dou voluntariamente” (Jo 10,18).

4.2 Consciência de sua missão

Se algo parece claro em Jesus, é a consciência clara e consciente de que tem uma missão a realizar e sua decisão de levá-la até o fim. Sua postura crítica frente às autoridades, sua liberdade diante da lei, seu desprezo do dinheiro - tudo isso não é mais do que conseqüência da decisão com que vive sua missão. Frente a esta missão nada conta: nem o comer nem o dormir nem a moradia nem o desvio dos parentes que o tomam por louco. Uma das passagens mais duras do Evangelho é a reprimenda que deu a Pedro, querendo dissuadi-lo de subir a Jerusalém. “Afasta-te, Satanás! És para mim a tentação, o mal e a pedra de escândalo” (Mt 16,21-23).

Veio para anunciar e pôr em marcha o Reino de Deus. O tempo se cumpriu e o Reino de Deus está próximo. O Reino de Deus realiza-se pela justiça, através de perseguições. Quem for perseguido por causa do Reino é feliz e deve alegrar-se. O Reino de Deus é o prêmio dos pequenos. Devemos buscá-lo acima de tudo. É fruto da doação e do serviço.

Jesus toma consciência, progressivamente, que está chamado a ser o último, o servidor, o escravo. Interpreta toda a sua vida sob esta perspectiva. Vê sua morte como o coroamento de sua vida de serviço. É um serviço vivido no sofrimento das massas populares que são conduzidas por guias cegos, como Ele dizia (Mt 15,14), e oprimidas por prescrições impossíveis. Sente como feito a Ele todo bem e todo o mal feito aos fracos. “A mim o fizestes” (Mt 25,40). Não se trata de um sentimento vazio. Remedeia os males que pode; descobre ao homem suas misérias e trata de educá-lo. É um homem que liberta e cria um impulso novo de vida.

4.3 Amor apaixonado à pessoa humana

Este é o motivo de seu trabalho, de sua liberdade e da consciência decidida de sua missão. Jesus é um homem próximo ao homem. Destacamo-lo como o fundo de seu ser e como a raiz de sua ação. A sua missão dirige-se aos homens e às mulheres; não é uma abstração. É uma chamada de serviço a todos e a cada um. É uma missão para os demais.

Antes de tudo, é um homem pronto ao perdão. “Amai vossos inimigos, fazei bem aos que vos perseguem” (Mt 5,44). “Já que Deus faz nascer o sol sobre bons e maus, também vós deveis amar a todos” (Mt 5,45). No entanto, acima destes ensinamentos Ele mesmo será o perdão vivo de quantos se aproximarem dele. Na cruz perdoará e desculpará os que O matam: “Pai, perdoai-lhes porque não sabem o que fazem” (Lc 23,34).

É, também, um coração carregado de compreensão e compaixão. Os evangelistas o dizem repetidamente: “Tinha compaixão do povo” (Mt 9,36) porque “eram como ovelhas sem pastor” (Mc 6,34). Seu amor faz-se próximo de todos, mas especialmente dos pequenos, dos pobres, dos fracos, dos oprimidos e dos marginalizados. Esta aproximação choca violentamente com as “pessoas de bem”. É contínuo motivo de escândalo.

Ama porque espera, e não só por altruísmo ou beneficência. De cada pessoa, do mais pobre, do mais miserável ou do mais explorador (Lc 19,2-10), Jesus espera uma mudança radical. Espera o imprevisível e o impossível. A cada pessoa que encontra o diz, de forma ou outra: “Tu podes dar muito mais de ti mesmo; tens de dá-lo...” Porque Jesus espera, também se torna violentamente crítico com os que estão instalados.

Jesus espera de Zaqueu e do jovem rico (Mt 19,16-26). Espera uma mudança radical da prostituta que se aproximou dele na casa de Simão, o fariseu, que pensava mal dele e dela (Lc 7,36-50). Jesus espera dos seus discípulos, lentos para entendê-lo e tardos para crerem. Espera da samaritana e da adúltera e do próprio Judas (Jo 18,4s). Em resumo, ama apaixonadamente a pessoa humana. Quando Jesus ama põe em jogo todo o seu ser, enérgico, inteiro e sem vacilações. Em cada passo e em cada situação. O amor leva-o às máximas delicadezas e aos maiores enfrentamentos.

4.4 Fé no Pai

Se não chegarmos até aqui não temos feito nem visto nada; não penetramos no fundo do ser de Jesus, por mais que tenhamos visto. Jesus é um homem que tem família. Ante seus contemporâneos aparece como “filho de José”, o carpinteiro (Lc 4,22) ou, então, como o filho de Maria. Ele, porém, fala de outro Pai e de outra Mãe. Continuamente nos está falando dEle. Quando pronuncia este nome fá-lo de maneira completamente particular.

É seu “Pai” ou, simplesmente, “o Pai” ou “o meu Pai”. “Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito”, dirá no momento supremo (Lc 23,46). Os escritores do Novo Testamento conservaram-nos na língua original o termo que Jesus empregava: “Abba”, termo equivalente ao que a criança usa para chamar seu pai.

Desde pequeno os evangelistas no-Lo apresentam com esta obsessão: “Não sabíeis que devo ocupar-me das coisas de meu Pai?” (Lc 2,49). Esta obsessão seguí-lo-á por toda a vida. É uma atitude radical que faz pôr a vontade do Pai acima de tudo, literalmente. “Pai, se é possível, afaste de mim este cálice. Porém, que não seja como eu quero, mas como tu queres” (Mt 26,39). É na vontade do Pai que mora a realização. Somos mais livres quanto mais colocarmos Deus em nossa vida. Somos nós mesmos quando formos o que Deus sonhou conosco. Se Deus não fosse Pai, isso seria tremendamente questionável; mas já que Deus é Pai abandonar-se nas mãos dEle torna-se a liberdade mais bonita que podemos imaginar. É o que Jesus fez. Ele foi tanto do Pai que deu a sua vida pelo mundo. Ele foi tanto do Pai que não poupou nada para si: “Tomem e comam! Isso é meu corpo dado por vocês.” “Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida pelo outro”. A fé no Pai orientou toda a vida de Jesus e se quisermos pensar em seguimento, não há outro caminho.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

POR ONDE NAVEGA A JUVENTUDE?

A diocese de Montenegro é a diocese mais nova do Rio Grande do Sul. Moram nela, formada por 32 municípios, cerca de 350 mil pessoas. Destas, cerca de 57 mil são jovens de 15 a 29 anos. Considerando as diferentes influências sociais, culturais, econômicas, por onde navegariam, religiosamente, estes 57 mil jovens? Essa é a pergunta que vai ser respondida por uma pesquisa que o Observatório Juvenil do Vale, da UNISINOS, está realizando na diocese de Montenegro, até o final de 2010. Aplicar-se-ão 550 questionários, distribuídos segundo a população juvenil dos municípios. Há aplicadores dos questionários nas cinco áreas pastorais: Montenegro, Salvador do Sul, Estrela, São Sebastião do Caí e Bom Princípio.

Saber por onde navega, religiosamente, a juventude desta diocese é interesse de todos: educadores, padres, pastores, pais e mães e os próprios jovens. Interessa a todos porque sonhamos, na região, com uma juventude sempre mais feliz e saberemos construir, juntos, esta felicidade, sabendo por onde andam as preocupações e os sonhos dos jovens porque a vivência do sagrado, mesmo para os que não são de religião, interessa a todos.
Os pesquisadores que estão assumindo o levantamento e a leitura dos dados são o Prof. Hilário Dick, da UNISINOS, e o estudante de Ciências Sociais - José Silon Ferreira.





PARA QUE PESQUISAR JUVENTUDE?
Para fazermos um bom trabalho junto e com a juventude, nada mais importante que conhecer a realidade desta juventude. Isso vale para todos os espaços onde, de alguma forma, os jovens são objeto de atenção e carinho, como é a escola, as igrejas, as comunidades e os movimentos sociais de todos os tipos, de modo especial os que estão envolvidos com movimentos juvenis, de igrejas ou não. Uma sociedade que gosta de si mesma caracteriza-se pelo encanto e pelo cuidado que tem com a juventude.

Por isso é bem-vinda, certamente, uma pesquisa que o Observatório Juvenil do Vale, da UNISINOS, está realizando nos 32 municípios que formam a diocese de Montenegro, envolvendo cidades de maior porte como Montenegro, Estrela, Portão, Teutônia, Taquari e Triunfo, como todos os outros municípios, não menos importantes, mas com menos habitantes. Trata-se, desta vez, de perceber por onde anda, religiosamente, o segmento juvenil (15 a 29 anos) desta região, em suas diferentes realidades, igualmente culturais. Serão entrevistados/as cerca de 550 jovens, distribuídos em todas as municipalidades.

A realização da pesquisa conta com o apoio decidido dos responsáveis pela diocese de Montenegro bem como com a alegre colaboração de diversas lideranças juvenis provindas de diversos municípios da região. Os encarregados do levantamento e da leitura dos dados, está sob a responsabilidade do Prof. Hilário Dick, reconhecido pesquisador da realidade juvenil, e do universitário de Ciências Sociais, da UNISINOS, José Silon Ferreira.

sábado, 19 de junho de 2010

Pesquisa revela que 90% dos jovens sofrem ou praticam violência nos relacionamentos

A violência entre casais no Brasil está mais precoce, menos unidirecional e assume também, nos dias atuais, um caráter mais virtual. Pesquisa recente, realizada pela Fundação Oswaldo Cruz em 10 capitais de todas as regiões do país, revelou que nove em cada 10 jovens na faixa etária entre 15 e 19 anos sofrem ou praticam variadas formas de violência – dentre as quais a exposição de fotos íntimas na internet como forma de humilhação.

A notícia é da Revista Fórum.

Os dados coletados com 3,2 mil adolescentes expõem um elemento que se choca com o senso comum de que os homens são, geralmente, os agressores. Agressões verbais, como provocações, cenas de ciúmes e tom hostil, e investidas sexuais – como forçar o beijo ou tocar sexualmente o parceiro sem que este queira – fazem parte do arsenal de violência utilizado por ambos os sexos.

A pesquisadora do Centro Latino-Americano de Estudos de Violência e Saúde Jorge Careli (Claves/Fiocruz) Kathie Njaine, que coordenou a pesquisa “Violência entre namorados adolescentes: um estudo em dez capitais brasileiras”, destaca que o panorama deve ser refletido a partir de múltiplas causas. “A violência pode vir da família, da comunidade em que o jovem vive e da escola”, afirma.

Segundo o estudo, as garotas são, ao mesmo tempo, as maiores agressoras e vítimas de violência verbal. Por outro lado, em termos de violência sexual, os rapazes encabeçam as estatísticas como os maiores agressores. Enquanto 49% dos homens relatam praticar esse tipo de agressão, 32,8% das moças admitem o mesmo comportamento.

Na categoria das agressões físicas, que inclui tapa, puxão de cabelo, empurrão, soco e chute, os relatos revelam que os homens são mais vítimas do que as mulheres – 28,5% delas informam que agridem fisicamente o parceiro, enquanto 16,8% dos homens relataram o mesmo.

A violência manifestada em tom de ameaça – como provocar medo; ameaçar machucar; ou destruir algo de valor – já vitimou 24,2% de jovens, ao passo que 29,2% admitiram ter perpetrado este tipo de agressão. De acordo com os números, 33,3% das meninas assumem que ameaçam mais seus parceiros, e 22,6% destes confessam cometer o mesmo tipo de violência.

Uma das razões apontadas para a eclosão da violência entre os jovens casais é o machismo. A coordenadora da pesquisa afirma que nenhuma pessoa nasce machista, mas pode aprender e assumir esse papel dentro de um contexto cultural.

Ressaltando que o estudo teve como finalidade fazer um diagnóstico, e não buscar as causas, Kathie Njaine argumenta que a agressão cometida pelas meninas pode ser compreendida como uma maneira de reproduzir um modelo de comportamento que está no gênero masculino. “Em muitos momentos da pesquisa, havia meninas que falavam se ele pode fazer, eu também posso”, exemplifica, acrescentando que as agressões, neste caso, tornam-se uma moeda de revide.

A socióloga Bárbara Soares, pesquisadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC/UCAM) e ex-subsecretária de Segurança da Mulher do governo do Estado Rio de Janeiro, elogia o viés da pesquisa de jogar luz sobre a violência praticada por mulheres e por descartar o modelo esquemático que vilaniza apenas os homens e vitimiza as mulheres. Em geral, ela afirma, as pesquisas têm o hábito de ouvir muito pouco as pessoas que vivem e praticam violência. “Os técnicos e ideólogos definem o que é a violência e, a partir daí, imprimem esse discurso no outro que não é ouvido. A violência não é uma abstração na vida de quem sofre ou pratica. Ela é situada, significada, tem um sentido. Eu acho que é aí que você pode desconstruí-la”, diz a especialista.

De acordo com a pesquisadora do CESeC, é comum o pressuposto de que somente as mulheres apanham, mesmo que, pelas pesquisas nacionais e internacionais, elas sejam vítimas das violências mais graves. “Não quero dizer que não exista um componente de dominação. Ele existe, mas não é uma dominação do homem contra a mulher, é uma sociedade de dominação machista em que os homens também são dominados por essa lógica”, argumenta.

Violência virtual

A eclosão precoce de violência entre os casais adolescentes revela que, desde cedo, as agressões ocupam papel importante no ambiente das relações afetivas. Nos dias atuais, é ponto pacífico que o aprimoramento das técnicas e dos meios de circulação das informações contribua decisivamente para a emergência de novos tipos de violência. A internet, nestas circunstâncias, adquire relevância e torna-se uma arma virtual nas relações entre os jovens.

Fatos e comportamentos que aconteceriam no mundo real, no dia-a-dia, acompanham essa tendência e são transportados para a rede virtual. Exposição de fotos e vídeos íntimos e publicação de hostilidades em sites e redes de relacionamento – como o orkut – são alguns dos métodos que compõem o quadro de violência existente na internet. Em conseqüência, os jovens tornam-se vulneráveis socialmente, uma vez que, por exemplo, sua relação com amigos ou a procura por empregos podem ser afetadas.
Kathie Njaine enfatiza que o relacionamento via tecnologia de informação é uma constante na vida dos jovens, o que potencializa o risco de agressões. “Na medida em que você publica uma notícia na internet, isso tem uma capacidade de se disseminar amplamente. O impacto de uma humilhação ou de uma fofoca é muito grande. O grau de exposição de uma situação é alto, não só em palavras como em imagens também”, afirma.

Para Bárbara Soares, isso exige novas respostas em termos de prevenção. “Todos os problemas vão se transformando na medida em que os meios de comunicação de relações interpessoais se transformam. Atualmente, muitos problemas se transferiram para a dimensão do espetáculo, da visibilidade, da exposição pública do crime mais banal até as relações íntimas. Então, acho que é preciso repensar em primeiro lugar a própria noção do que seja violência, atualizando o repertório que faz parte do nosso catálogo, e começar a refletir formas específicas de prevenir mais este tipo de violência”, explica a socióloga.

De acordo com ela, a exposição de imagens íntimas afeta mais as mulheres, porque envolve uma cultura de privacidade, pudor e do uso da pessoa como um objeto do prazer. Para os homens, em contraposição, predomina a valorização de sua potência sexual, vista como um troféu a ser exibido.

“O telefone celular e a internet são tecnologias que estão mudando a nossa sociabilidade, nossos comportamentos e pensamentos. Há uma noção de que você só existe se, de alguma forma, for visível. No entanto, há risco de que essa visibilidade seja mais um elemento de violência”, acrescenta Bárbara, reforçando que as campanhas de prevenção precisam ter um olhar mais amplo, menos maniqueísta e menos esquemático e que considerem a violência e suas múltiplas causas e linguagens.

domingo, 6 de junho de 2010

ESTATELAMENTO DO IPJ/RS e os/as religiosos/as com isso?

Um apelo à CRB do Rio Grande do Sul e do Brasil
fazendo memória do P. Gisley Azevedo - estigmatino

Gostaríamos tanto de falar de tudo que os/as religiosos/as já fizeram e fazem pela juventude, no Brasil e na América Latina, mas agora precisamos falar outras coisas porque não é hora de ficar calado. Escrevemos depois de saber do 7º padre morto, no ano de 2010, por causa da juventude e, dentre eles, o P. Gisley Azevedo , o único religioso entre os sete e que foi assassinado com três tiros na cabeça, em Brazlândia. Nossa indignação e nossa reflexão se orientam, de modo especial, para os que fazem parte da Vida Religiosa e vamos ater-nos a quatro aspectos. Sabemos que não são palavras fáceis nem agradáveis. Mesmo que a resposta seja o silêncio, leia quem quiser ler e discuta quem quiser discutir e melhorar a situação.

1. ESCÂNDALO OU COVARDIA DOS RELIGIOSOS?

Os 30 anos do IPJ, com sede, primeiramente, em Porto Alegre e, depois, no bairro Niterói, em Canoas/RS, vão ser festejados com um triste fechar de portas, pelas mesmas Congregações que, um dia, se alegraram com o seu nascimento. Muito triste porque os 30 anos, de tantos serviços à juventude, parecem ter-se tornado uma memória que precisa ser esquecida. Cria-se um filho para matá-lo depois. Assim como aconteceu com a Ação Católica e quase está acontecendo com a Pastoral da Juventude.

A dúvida é se isso (o fechamento do IPJ/RS) é um escândalo ou se é uma covardia. Desde seu início, em 18 de janeiro de 1980, o IPJ foi um serviço dos religiosos do Sul 3 à Igreja do Rio Grande do Sul para a evangelização da juventude. Comandavam-no três objetivos: formação, assessoria e pesquisa. Quantos cursos, seminários e retiros; quantas viagens pelas dioceses; quantas publicações, servindo de alimento para adultos e jovens; quanta alegria e quanta descoberta! Até no campo da pesquisa e da produção, como se trabalhou... Era um serviço de uma inter-congregacionalidade visitado e admirado por vários/as Superiores/as Gerais, pondo-se a serviço da evangelização da juventude. Mesmo com algumas dificuldades, funcionou durante 30 anos. O que aconteceu? Se o IPJ perdeu sua atualidade, saber-se-ia dizer alguma razão ou é, tristemente, a mudança de um cenário de Igreja? Falta de recursos financeiros? Falta de recursos humanos? Se a resposta for financeira, é um escândalo porque todos sabem que isso não é verdade e todos sabem que trabalhar com jovens nunca deu lucro; se a resposta for falta de recursos humanos é uma covardia descarada porque todos sabem que existem agentes (leigos e religiosos), preparados, com vontade doida de dedicar-se a este serviço, com uma remuneração digna. Se a motivação é ideológica ou de cenário de Igreja, a covardia e o escândalo se tornam mais sérios porque isso não se confessa. Isso se faz, mesmo que na surdina.

Se lermos o documento 85 da CNBB – Evangelização da Juventude – Desafios e Perspectivas Pastorais, vamos descobrir que, fora aquilo que se refere ao “Setor”, lá se encontra formalizado o que o IPJ/RS, em comunhão com a Igreja e a Pastoral da Juventude da América Latina, sempre defendia. Além dos variados serviços prestados, não foi com a ajuda do IPJ que também se iniciou, no Brasil, o primeiro dos Cursos de Pós-Graduação em Juventude, fazendo que a juventude se tornasse um assunto encarado com mais cientificidade? Mais ainda: um dos objetivos do IPJ não era exatamente o estudo e a pesquisa da realidade juvenil? Há, contudo, religiosos/as que afirmam que um IPJ não precisa de pesquisa... Motivo de escândalo e de covardia é uma Conferência de Religiosos, ou uma parte dela, confessar que não está em condições de manter viva uma obra com os objetivos do IPJ/RS. O que parece ter acontecido é que terminou nela, numa parte da Vida Religiosa, o encanto pela juventude... Não falamos da juventude que está sob as asas das Congregações, principalmente em seus colégios; falamos dos milhares de grupos de jovens espalhados pelas paróquias e dioceses que não podem contar com o apoio das famílias de religiosos/as que dizem ter, como carisma, o trabalho com a juventude. Não ter olhos para esta realidade é escândalo e covardia. E é por aí que o IPJ prestava seu serviço nem sempre acolhido por autoridades, mas sempre agradecido pelos jovens, isto é, pelas juventudes vivendo sob as asas das paróquias, dioceses e regionais, muitas vezes necessitadas de apoios humanos e financeiros. Eram os religiosos/as servindo uma Igreja que ia além das “nossas obras”. Daí o escândalo e a covardia.

2. CAMPANHA CONTRA O EXTERMÍNIO

Os 30 anos do IPJ, com sede, primeiramente, em Porto Alegre e, depois, no bairro Niterói, em Canoas, vão ser festejados com um triste fechar de portas, pelas mesmas Congregações que, um dia, se alegraram com o seu nascimento. Muito triste porque os 30 anos, de tantos serviços à juventude, parecem ter-se tornado uma memória que precisa ser esquecida .

Como é lastimável dar-nos conta que, enquanto se fecham as portas deste IPJ, a juventude da Igreja e, também, a juventude fora da Igreja está empenhada numa Campanha inusitada: a Campanha contra a violência e o extermínio de jovens, procurando fazer ouvir o grito A Juventude quer viver”. Em vez de procurar o encanto pela juventude e ser fiel ao carisma de trabalho com a juventude, religiosos/as decidem o extermínio de uma obra onde o coração, há 30 anos, era a juventude. Não se está fechando uma paróquia; não se está fechando um colégio; está-se fechando uma obra cuja alegria era colaborar teológica e pedagogicamente na construção do empoderamento juvenil para jovens que vinham de colégios públicos, de periferias e interiores pobres, de paróquias e dioceses necessitadas, alegrando-se e servindo-se de uma instituição mantida por religiosos/as que amavam a juventude sem esperar lucros a não ser os lucros que significam os valores de personalidades ajudadas em sua descoberta do sentido da vida. Vão dizer que a comparação com o “extermínio” é apelativa, mas perguntem ao coração da juventude que precisava disso se ela vão dizer o mesmo. Perguntem por quanto tempo tudo aquilo que significava “IPJ”, em 2006, além de não saber para onde ir, ficou na poeira dos corredores por vários meses porque era urgente que o Curso de “Design” tivesse uma moradia em Porto Alegre... Sabemos que a juventude de “nossos” colégios não precisava dessa obra; mas trata-se de uma minoria, nem sempre a mais pobre, que tem ginásio coberto, computador, colégios limpos, piscina etc. para atrair alunos, mas não sabemos se é isso que eles (os adolescentes e jovens) querem no mais profundo deles. Por isso, a desconfiança do atendimento que se dá a eles... Quantos educadores de “nossas” instituições estudam juventude? É que já sabemos tudo e basta viver o dia a dia. Por que estudos mais especializados?Não adianta de nada... Sabemos que não é esse o discurso de todos, mas ele é real. Por isso insistimos no “extermínio”. Acabar com o IPJ é uma forma de exterminar a juventude, tirando dela mais um espaço de vida, partilha e acompanhamento.

3. A PREOCUPAÇÃO TRISTE PELO ESPÓLIO

Pensando no estatelamento do IPJ a preocupação é a biblioteca, o banco de dados, a memória histórica e tantas outras coisas que o IPJ foi adquirindo nos 30 anos. A imagem que nos vem à cabeça está em João 19,23-24: Quando crucificaram Jesus, os soldados repartiram as roupas dele em quatro partes. Uma parte para cada soldado. Deixaram de lado a túnica. Era uma túnica sem costura, feita de uma peça única, de cima até embaixo. Então eles combinaram: “Não vamos repartir a túnica. Vamos tirar a sorte, para ver com quem fica”. Em nosso caso, parece que a túnica ficou com a CNBB, embora alguns “soldados” tenham demonstrado interesse por alguns objetos... Isso não significa que seja algo ruim, mas nos preocupa.

Um aspecto que faz entristecer é que o responsável pelo imóvel alugado, vendo a situação de dificuldades financeiras, não foi nem ouvido quando dizia e pedia que o IPJ ficasse ali, mesmo só pagando, como aluguel, um preço simbólico de uma coisa de nada. Não! A sorte do extermínio já estava lançada, seguida até de uma ameaça: Por favor, não fiquem pensando em lançar ao mundo a memória dos 30 anos... Atitudes desse tipo parece que expressam vergonha de tudo que se fez.


4. LONGE DA JUVENTUDE

São gestos como este do “estatelamento” que confirmam os levantamentos que existem, no momento, sobre a distância dos religiosos/as da juventude. Há alguns anos atrás, quando se viam sacerdotes, religiosos e religiosas participando das movimentações de jovens em Assembléias, em Encontros Regionais com mais de 45 mil jovens e outros eventos juvenis da Igreja, quando você entrava nos seminários e perguntava aos seminaristas e vocacionadas/os onde aprenderam a ter vontade de ser religioso/a ou padre a resposta era: no meu grupo de jovens. A juventude dos grupos de hoje que diga o que eles enxergam... Que se escutem, também, tantos jovens religiosos/as que gostariam de ser tratados/as como jovens e trabalhar com juventude, mas são levados a trabalhar numa Pastoral Vocacional que, muitas vezes, não tem nada a ver com juventude... Pode ser, até, um discurso exagerado, mas que é uma realidade é; só não aceita quem enterra a cabeça na areia para não ver. Até poderíamos atrever-nos a perguntar pelos sonhos com a juventude e pela evangelização da juventude que tiveram os responsáveis pelo IPJ nos últimos anos. Sabemos que generalizar essa afirmação é perigoso, mas sabemos que se lá estivesse um grupo preocupado, de fato, com a boa notícia para a juventude, ter-se-iam encontrado soluções para as dificuldades que não faltam em qualquer parte. Uma preocupação que surge no horizonte é que as diferentes comunidades religiosas parece que se esqueceram que são da Igreja e se estão fechando na formação de juventudes segundo os diversos carismas, sem muita preocupação com um trabalho orgânico com aquilo que são as Pastorais de Juventude. Não negamos que isso seja um direito e, até, uma obrigação. O que condena essa atitude para a frustração é deixar de lado a preocupação e a convicção que tudo isso tem sentido numa decidida inserção orgânica na vida eclesial.

CONCLUSÃO

Se quisermos sobreviver como religiosos/as e sermos, dentro e fora da Igreja, uma manifestação da profecia embutida em nosso carismas, não há outra saída do que o re-encanto pela juventude. Temos o dever de amar a juventude. Mais, até, do que encantar-nos, precisamos deixar-nos seduzir pela realidade teológica escondida na juventude como semente oculta do Verbo. É uma forma de escaparmos de uma esterilidade que perdeu a alegria da novidade.

Gostaríamos de não ficarmos somente neste discurso de indignação. Gostaríamos que estas linhas gerassem algo dentro de nós, nos inquietasse e nos incomodasse a fazer algo diferente, mas em prol de toda a juventude. Gostaríamos muito que nos consultassem sobre o novo serviço que – pelo que parece - pensa ser construído. As necessidades são muitas, mas não nos esqueçamos da juventude que