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sábado, 28 de maio de 2011

Quatro frases que fazem o nariz do Pinóquio cresce

1- Somos todos culpados pela ruína do planeta.

A saúde do mundo está feito um caco. "Somos todos responsáveis", clamam as vozes do alarme universal, e a generalização absolve: se somos todos responsáveis, ninguém é. Como coelhos, reproduzem-se os novos tecnocratas do meio ambiente. É a maior taxa de natalidade do mundo: os experts geram experts e mais experts que se ocupam de envolver o tema com o papel celofane da ambiguidade.

Eles fabricam a brumosa linguagem das exortações ao "sacrifício de todos" nas declarações dos governos e nos solenes acordos internacionais que ninguém cumpre. Estas cataratas de palavras - inundação que ameaça se converter em uma catástrofe ecológica comparável ao buraco na camada de ozônio - não se desencadeiam gratuitamente. A linguagem oficial asfixia a realidade para outorgar impunidade à sociedade de consumo, que é imposta como modelo em nome do desenvolvimento, e às grandes empresas que tiram proveito dele. Mas, as estatísticas confessam.

Os dados ocultos sob o palavreado revelam que 20% da humanidade comete 80% das agressões contra a natureza, crime que os assassinos chamam de suicídio, e é a humanidade inteira que paga as consequências da degradação da terra, da intoxicação do ar, do envenenamento da água, do enlouquecimento do clima e da dilapidação dos recursos naturais não-renováveis. A senhora Harlem Bruntland, que encabeça o governo da Noruega, comprovou recentemente que, se os 7 bilhões de habitantes do planeta consumissem o mesmo que os países desenvolvidos do Ocidente, "faltariam 10 planetas como o nosso para satisfazerem todas as suas necessidades". Uma experiência impossível.

Mas, os governantes dos países do Sul que prometem o ingresso no Primeiro Mundo, mágico passaporte que nos fará, a todos, ricos e felizes, não deveriam ser só processados por calote. Não estão só pegando em nosso pé, não: esses governantes estão, além disso, cometendo o delito de apologia do crime. Porque este sistema de vida que se oferece como paraíso, fundado na exploração do próximo e na aniquilação da natureza, é o que está fazendo adoecer nosso corpo, está envenenando nossa alma e está deixando-nos sem mundo.

2- É verde aquilo que se pinta de verde.

Agora, os gigantes da indústria química fazem sua publicidade na cor verde, e o Banco Mundial lava sua imagem, repetindo a palavra ecologia em cada página de seus informes e tingindo de verde seus empréstimos. "Nas condições de nossos empréstimos há normas ambientais estritas", esclarece o presidente da suprema instituição bancária do mundo. Somos todos ecologistas, até que alguma medida concreta limite a liberdade de contaminação.

Quando se aprovou, no Parlamento do Uruguai, uma tímida lei de defesa do meio-ambiente, as empresas que lançam veneno no ar e poluem as águas sacaram, subitamente, da recém-comprada máscara verde e gritaram sua verdade em termos que poderiam ser resumidos assim: "os defensores da natureza são advogados da pobreza, dedicados a sabotarem o desenvolvimento econômico e a espantarem o investimento estrangeiro."

O Banco Mundial, ao contrário, é o principal promotor da riqueza, do desenvolvimento e do investimento estrangeiro. Talvez, por reunir tantas virtudes, o Banco manipulará, junto à ONU, o recém-criado Fundo para o Meio-Ambiente Mundial. Este imposto à má consciência vai dispor de pouco dinheiro, 100 vezes menos do que haviam pedido os ecologistas, para financiar projetos que não destruam a natureza. Intenção inatacável, conclusão inevitável: se esses projetos requerem um fundo especial, o Banco Mundial está admitindo, de fato, que todos os seus demais projetos fazem um fraco favor ao meio-ambiente.

O Banco se chama Mundial, da mesma forma que o Fundo Monetário se chama Internacional, mas estes irmãos gêmeos vivem, cobram e decidem em Washington. Quem paga, manda, e a numerosa tecnocracia jamais cospe no prato em que come. Sendo, como é, o principal credor do chamado Terceiro Mundo, o Banco Mundial governa nossos escravizados países que, a título de serviço da dívida, pagam a seus credores externos 250 mil dólares por minuto, e lhes impõe sua política econômica, em função do dinheiro que concede ou promete.

A divinização do mercado, que compra cada vez menos e paga cada vez pior, permite abarrotar de mágicas bugigangas as grandes cidades do sul do mundo, drogadas pela religião do consumo, enquanto os campos se esgotam, poluem-se as águas que os alimentam, e uma crosta seca cobre os desertos que antes foram bosques.

3- Entre o capital e o trabalho, a ecologia é neutra.

Poder-se-á dizer qualquer coisa de Al Capone, mas ele era um cavalheiro: o bondoso Al sempre enviava flores aos velórios de suas vítimas... As empresas gigantes da indústria química, petroleira e automobilística pagaram boa parte dos gastos da Eco-92: a conferência internacional que se ocupou, no Rio de Janeiro, da agonia do planeta. E essa conferência, chamada de Reunião de Cúpula da Terra, não condenou as transnacionais que produzem contaminação e vivem dela, e nem sequer pronunciou uma palavra contra a ilimitada liberdade de comércio que torna possível a venda de veneno.

No grande baile de máscaras do fim do milênio, até a indústria química se veste de verde. A angústia ecológica perturba o sono dos maiores laboratórios do mundo que, para ajudarem a natureza, estão inventando novos cultivos biotecnológicos. Mas, esses desvelos científicos não se propõem encontrar plantas mais resistentes às pragas sem ajuda química, mas sim buscam novas plantas capazes de resistir aos praguicidas e herbicidas que esses mesmos laboratórios produzem. Das 10 maiores empresas do mundo produtoras de sementes, seis fabricam pesticidas (Sandoz-Ciba-Geigy, Dekalb, Pfizer, Upjohn, Shell, ICI). A indústria química não tem tendências masoquistas.

A recuperação do planeta ou daquilo que nos sobre dele implica na denúncia da impunidade do dinheiro e da liberdade humana. A ecologia neutra, que mais se parece com a jardinagem, torna-se cúmplice da injustiça de um mundo, onde a comida sadia, a água limpa, o ar puro e o silêncio não são direitos de todos, mas sim privilégios dos poucos que podem pagar por eles. Chico Mendes, trabalhador da borracha, tombou assassinado em fins de 1988, na Amazônia brasileira, por acreditar no que acreditava: que a militância ecológica não pode divorciar-se da luta social. Chico acreditava que a floresta amazônica não será salva enquanto não se fizer uma reforma agrária no Brasil.

Cinco anos depois do crime, os bispos brasileiros denunciaram que mais de 100 trabalhadores rurais morrem assassinados, a cada ano, na luta pela terra, e calcularam que quatro milhões de camponeses sem trabalho vão às cidades deixando as plantações do interior. Adaptando as cifras de cada país, a declaração dos bispos retrata toda a América Latina. As grandes cidades latino-americanas, inchadas até arrebentarem pela incessante invasão de exilados do campo, são uma catástrofe ecológica: uma catástrofe que não se pode entender nem alterar dentro dos limites da ecologia, surda ante o clamor social e cega ante o compromisso político.

4- A natureza está fora de nós.

Em seus 10 mandamentos, Deus esqueceu-se de mencionar a natureza. Entre as ordens que nos enviou do Monte Sinai, o Senhor poderia ter acrescentado, por exemplo: "Honrarás a natureza, da qual tu és parte." Mas, isso não lhe ocorreu. Há cinco séculos, quando a América foi aprisionada pelo mercado mundial, a civilização invasora confundiu ecologia com idolatria. A comunhão com a natureza era pecado. E merecia castigo.

Segundo as crônicas da Conquista, os índios nômades que usavam cascas para se vestirem jamais esfolavam o tronco inteiro, para não aniquilarem a árvore, e os índios sedentários plantavam cultivos diversos e com períodos de descanso, para não cansarem a terra. A civilização, que vinha impor os devastadores monocultivos de exportação, não podia entender as culturas integradas à natureza, e as confundiu com a vocação demoníaca ou com a ignorância. Para a civilização que diz ser ocidental e cristã, a natureza era uma besta feroz que tinha que ser domada e castigada para que funcionasse como uma máquina, posta a nosso serviço desde sempre e para sempre. A natureza, que era eterna, nos devia escravidão.

Muito recentemente, inteiramo-nos de que a natureza se cansa, como nós, seus filhos, e sabemos que, tal como nós, pode morrer assassinada. Já não se fala de submeter a natureza. Agora, até os seus verdugos dizem que é necessário protegê-la. Mas, num ou noutro caso, natureza submetida e natureza protegida, ela está fora de nós. A civilização, que confunde os relógios com o tempo, o crescimento com o desenvolvimento, e o grandalhão com a grandeza, também confunde a natureza com a paisagem, enquanto o mundo, labirinto sem centro, dedica-se a romper seu próprio céu.


* Eduardo Galeano é escritor e jornalista uruguaio

domingo, 15 de maio de 2011

MANIFESTAÇÃO E ACOLHIDA Reflexões de aniversário

Podemos dizer que o dia do nascimento é o dia da nossa “manifestação”, embora nos tivéssemos “manifestado” já antes, no ventre materno, nem sabendo mais como... Sem sermos vistos, éramos visíveis, através da mãe. Éramos olhados. Claro que, hoje, já nos olham antes, crescendo na total dependência, e até tiram fotos nossas, preparando-nos para nos manifestar. Já sabem se somos isto ou aquilo e ficam esperando o dia em que nos “manifestaremos”.
“Nascer”, manifestando-se, é sair, pela energia da natureza, da dependência agradável do carinho de quem nos ama. “Nascer” é uma aventura para a qual ninguém nos pediu permissão. Ninguém pode dizer que nasceu porque quis. É duro, desconfortável, ameaçador “nascer”. Além de chorarmos, as pessoas se alegram quando nascemos e choramos. “Nascer” é um presente que somos obrigados a aceitar... Um dom que nos é dado – dizem – com jeito amoroso e divino. Se não for assim, quanto fundamento a ser reconstruído! Sempre nos horrorizamos com o desespero de Jó dizendo morra o dia em que nasci e a noite em que se disse: um menino foi concebido (Jó, 3.1).
Em todo o caso, desde o começo, esperam de nós uma resposta e nem sempre as respostas são agradáveis. Nascemos renunciando... Sempre, desde o começo, estamos diante de uma proposta de amor. A vida, enfim, se resume numa resposta a uma proposta. “Deus soprou-lhe nas narinas... e ele/a tornou-se um ser vivente” (Gn 2,7), porque ser vivente era bom. A árvore da vida “estava no meio do jardim” (Gn 2,9), não na periferia. A vida está não está em cima nem em baixo; ela está no centro porque no centro está Deus. “Eu lhe propus a vida ou a morte. Escolha, portanto, a vida” (Dt 30, 19). Como é bonito ver, descobrir, degustar que a liberdade não se compreende fora da geografia do dom. Depois da ressurreição sabemos que a vida é mais do que um sopro. O sopro de Deus foi um convite para a eviternidade. Como diz o sofrido e o esperançoso Jó, o sopro de Deus que me criou, me deu vida (Jó 33,4). É preciso descobrir, pois, que na sabedoria dessa aceitação, é que se encontra a vida.
Contudo, não podemos ficar na “vida da gente”. A vida é um horizonte porque, como diz o Evangelho, “quem procura conservar a própria vida, vai perde-la. E quem perde a sua vida por causa de mim, vai encontrá-la” (Mateus 10, 39). Não sei se estou conseguindo viver isso, mas é uma verdade que me comanda há muito tempo. Ser vida, nascer, é nascer para a alegria e o gozo dos outros. O Evangelho também diz que “quem quiser salvar a sua vida, vai perdê-la” (Mateus 16,25). Lucas fala de preservar. Lemos, por isso, igualmente, Jesus “veio para servir e para dar a sua vida como resgate” (Marcos, 10, 45). Fico perguntando-me, por isso, o que é ter um projeto de vida, o que é uma causa? Uma vida que não seja doada não é vida.
Neste dia de minha “manifestação” gostaria de dizer que estou gostando de viver. Agradeço a Deus e a todos que me estão dando essa chance. Fico pensando na família que foi nosso primeiro ninho, mas que é preciso abandonar, por vezes amando de longe, espiando pelos mais variados sentimentos. Fico pensando nos educadores/as que, com seu jeito de pelicanos/as, sempre procuraram dar-se da melhor forma para que a vida nos sorrisse. Fico pensando nas “instituições” onde vivi, trabalhei, sonhei, pelejei e ri. A gente recebe e deixa parte de nós em muitos espaços. Gostaria de “agradecer”, por isso, a acolhida que tive. Embora a vontade nossa seja de acolher, somos mais acolhidos que acolhedores. Por isso teremos certamente a eternidade para nunca acabar de agradecer. É que a “manifestação” não existe sem “acolhida”. A todos e todas, o meu simples, solene, sincero, alegre, animado, vibrante, humilde, gostoso, humano agradecimento à VIDA que borbulha, borbota, acachoa e marulha nos 74 anos que inicio acompanhado dos cuidados de vocês.

P. Hilário Dick S.J
12 de maio de 2011