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segunda-feira, 13 de julho de 2009

PADRE GISLEY DE AZEVEDO GOMES

PADRE GISLEY DE AZEVEDO GOMES,
TRINTA DIAS DEPOIS

EM DOIS TEMPOS

Hilário Dick

1º tempo

Reunidos, Carmem - com suas idéias sempre cheias - e eu, resolvemos convidar Gisley para visitar Morrinhos, a terra dele. E ele aceitou. Marcamos um encontro perto de uma passarela, na BR 353, em Goiânia. Fui, no dia, com o “gol” do Geraldo, perto daquela passarela combinada, mas ele não estava lá. Carmem esperaria no viaduto, mas não encontrei o viaduto. Fiz voltas e mais voltas, perguntando gente que sabia e não sabia. Por fim, cheguei ao local onde Carmem não estava, mas podia ver-me passando... Qual não foi minha surpresa (se é que isso existe) quando Gisley estava, com Carmem, esperando do outro lado da avenida.

- Que sacanagem... Mas, bom dia...
- Então vamos?
Carmem na frente e Gisley, atrás, no meio de nós.
- Estou curioso como está meu antigo corpo... disse Gisley.
- Custou muito sair do paraíso?
- Não. Mas me disseram não demorar muito porque vai ter festa no céu por todos os que deram a vida pela juventude.

E lá fomos nós na estrada que leva a São Paulo, passando em Morrinhos.
- E eu agüentar aqui os 120 km, como “caroneiro” de quem não sabe a estrada?
- Combinação é combinação! disse Carmem. “E trate de invocar seus anjos porque com o Hilário no guidão, o mundo corre riscos inesperados...”
Fomos pela estrada, com Gisley no meio de nós, espiando e reclamando porque não tinha som no carro.
- Avisou a mãe? Avisou os padres?
- Sim, disse Carmem, vamos almoçar na casa de sua mãe.

E lá fomos nós, rumo a Morrinhos, com Gisley falando dos planos que tinha e do que tinha ouvido sobre ele no paraíso. Ele falava e falava, e ria daquele jeito dele. A certa altura, disse:
- Posso dormir? Não estou mais acostumado a esta mudança de espaço. Onde estou, tudo é tão mais leve. Posso?
Com Gisley no meio de nós, dormindo, Carmem e eu nos olhamos e fomos vencendo os 120 quilômetros.
- Acho que é ali! disse Carmem. “Oi Gisley! acorda. Estamos chegando...”
- Bonita sua terra, disse eu.
- Mais bonita de quando eu jogava bolinha de gude nestes planaltos que viram esta beleza aqui crescer, disse nosso companheiro do meio, convencidinho como era.

Entrando na cidade, o que buscamos primeiro foi a residência dos companheiros de congregação. Ah! Esqueci-me de dizer que só Carmem e eu víamos o Gisley. Para os outros era invisível, porque ele havia decidido que assim seria melhor. No fundo, ele queria contemplar as pessoas amadas, mas sem atrapalhar os sentimentos verdadeiros delas.

Bem acolhidos, quem devia dar um jeito na chave daquela “capelinha funerária” onde haviam enterrado Gisley, era Adriano. Mas busca dali e de lá, a chave esta com uma senhora que foi trabalhar em Itumbiara.
- Vamos assim mesmo... disse Gisley para nós.
Adriano parecia ter ouvido uma voz e perguntou:
- O quê?
- Nada, nada... disse Carmem, disfarçando e olhando de lado para Gisley, invisível no meio de nós.
- Está bem. Levo vocês...

E lá fomos nós para o lugar em que estava o túmulo de Gisley. Ele deu a mão para Carmem, e fomos até onde se erguia, fechada, a “capela mortuária”. Lá, tanto eu como Gisley, ficamos diante da fresta da porta querendo enxergar, mas não vimos nada.
- Chiii, me esqueci! disse ele. Vocês não se lembram que eu lhes disse no caminho que eu estava lá, mas não estava?
Mas fiquei olhando, apesar disso, para a fresta que não mostrava nada. Rezei fundo, mas rápido. Depois daquelas rezas que não tem tempo, o Adriano falou:
- Agora levo vocês na casa da mãe. Venham atrás...
E fomos. Era no outro bairro. Gisley, no meio de nós, recordava tudo.
- Que susto que a família levaria se não estivesse invisível, dizia ele, rindo, no meio de nós.

A mãe, as irmãs, o cunhado, as sobrinhas todos estavam lá e só viam a nós, mas não a ele. Gisley estava no coração sofrido de todos eles e ele olhava o tamanho da dor de cada um. Enquanto, durante horas, olhávamos fotos, recordávamos, almoçávamos, misturando risos e lágrimas, o invisível ia e vinha pela casa, olhando tudo, principalmente a esperança que via nascer no coração da família. Quando íamos embora, havíamos falado da celebração que haveria na Casa da Juventude, de noite, mas ninguém quis ir conosco e lá voltamos nós.

- Que vontade doida de me mostrar para eles! disse Gisley. Mas tenho quase certeza que, ou teriam um ataque, ou não poderiam crer porque esta coisa de “outra vida” é falada de modo tão complicado quando, na verdade, a flor da esperança já está bem forte, até naquela sobrinha da qual sou padrinho...

Estando na estrada, ele, no meio de nós, de repente falou:
- Como cansam estas coisas do coração! Posso descansar?
E fomos voltando. Já perto de Goiânia, Gisley acordou.
- Olha, acho que vou voltar. Não vou ficar para a celebração. Andei lendo, contudo, nos corações das pessoas que a mãe, a irmã, as sobrinhas, o pai, os irmãos vão aparecer por lá, mesmo que não tenham dito nada. Gostaram da visita de vocês e a esperança da vida deu um pulo grande. Rezem a vida...
- Às 08h30min na CAJU, viu?
- Estarei lá.

E Gisley, de repente, não estava mais no meio de nós. As tarefas do paraíso o chamavam. Havíamos combinado que, uma semana depois, ele iria comigo (conosco) para Brasília. A celebração da noite foi linda, linda. Como o invisível gostava, não faltou incenso e muito sentimento.



2º tempo

Era sábado de manhã. Gisley combinara viajar comigo e com quem fosse com a gente, sem ser visto. Quando cheguei à CAJU, lá estava ele com aquelas vestes charmosas das quais gostava. Foi fazendo-me um gesto de silêncio e sentou-se no meio do acento traseiro, esperando que Édina, Jaciara e Regina embarcassem.
- Você não disse que o Gisley iria conosco?
- No coração de cada um de nós, respondi, piscando para Gisley no meio de nós.

Viagem tranqüila, com Regina abusando de meus erros de motorista, mas fomos.
- Uma peregrinação, não é Jaciara?
- Sim, com um companheiro que está e não vemos...
Gisley e eu nos olhávamos pelo espelho. Mais adiante o peso do espaço fez nosso companheiro invisível dormir apesar das sabedorias que Jaciara calava, que Édina ria e que Regina cantava.

Quando paramos num restaurante, na estrada, Gisley também saiu, esticando o espírito. Não gostou que eu fumasse... Voltando ao carro, não é que Édina tropeça no Gisley?
- Que é isso? disse Jaciara.
- Parecia ter gente... disse Édina.
- Chiii... parece Gisley tropicando por coisas simples, disse Regina.

E assim chegamos em Taguatinga, depois de pequenos erros. Esperava-nos a comida feita por Cláudia, Wagner e Luciene. Eder e muita gente estavam aí em espírito. Impossível saber o nome de todos eles. Gisley, ao sair do carro, olhava mais firme, não sei por quê. Ninguém o via, mas ele estava no espírito de todos. Conhecia bem aquele apartamento de amigos/as e foi na varanda contemplar a cidade que esconde, também, pessoas traiçoeiras. Olhava e perdoava. De minha parte, abraçando as pessoas parecia estar abraçando também Gisley que olhava no coração de todos e todas. Era o local da reza do Ofício Divino da Juventude, das confidências e das risadas que a vida merece.

Pelas 16h00min horas começou a parte mais dorida de nossa peregrinação. Gisley puxou-me para o lado e sussurrou:
- Estive lá antes da cruz... Não se importa se fico triste, né? É que no paraíso as tristezas são, também, alegria. Posso?

Não pude dizer nada porque os mistérios são mistérios. E lá fomos nós, buscando a tal de Brazlândia. Nossos corações peregrinos acharam a estrada comprida, perigosa e sagrada. A certa altura desviamos pra direita, numa subida de morro. Gisley parecia recordar coisas... e olhava para mim que nem sempre tenho coração de compreender. Wagner, que ia na frente, encostou o carro e nossos corações viram: uma cruz branca, com o nome de Gisley de Azevedo Gomes. Percebi que Gisley não queria descer...
- Sim! disse ele. Aqui me deixaram...

Com a devoção que encontramos em nós, todos descemos, olhamos, tocamos a cruz, olhamos o capinzal derrubado, vimos luvas abandonadas, tudo silêncio. Minutos que desenhavam uma eternidade. Aquela paisagem não é mais a mesma depois daquele dia... Gisley ficava olhando nossos sentimentos.

- Acho que os sentimentos vão mostrar-se na vida que vamos viver depois de ver estas coisas, disse Luciene.
- Que tal a idéia de construirmos, aqui, uma pequena capela? falava Wagner carregado de vontade de ver as coisas brotando a partir do sangue de Gisley que não mais se via.
- Por que não celebrar aqui o Dia Nacional da Juventude? dizia Édina.

Fiquei mudo, com raiva do local escolhido para Gisley por uma sociedade que não ama a juventude. Lugar maldito, mas que pode virar um lugar sagrado... Depende de quem?

Gisley estava olhando como a pedir para a Regina e a Jaciara que cantassem uma coisa de juventude e esperança, e nós choramos. Todos, sem saber por que... Melhor, com a paisagem inteira sabendo que só chorávamos a ausência de um amigo que, sem saber, estava no meio de nós.

Quando voltamos ao carro, Gisley já tinha partido porque o coral da esperança e da vida o esperava, no paraíso da vida. Já era tarde e o invisível não estava mais. Melhor: ele estava mais fundo de todos nós.

No “Lual” que o grupo de amigos inventou naquela noite, tudo, até as estrelas, só falavam desse amigo da juventude e de todos que se querem bem em cantos, poesias e recordações. Ali estavam miríades de amizades amando a vida através de uma aparente ausência.