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quinta-feira, 14 de agosto de 2008

Emergência e Percepção de Novos Valores na Juventude (2)

Hilário Dick


Dados de uma pesquisa


Refletindo sobre estas coisas suscitadas pelos valores da juventude, poderia revoar sobre os mais de 35 anos de trabalho com grupos de jovens, mas preferimos pinçar alguns dados de uma pesquisa realizada durante três anos numa cidade de 210 mil habitantes, da grande Porto Alegre, onde viviam mais de 56 mil jovens e onde morriam mais jovens e adolescentes de todo o Estado do Rio Grande do Sul(1). Os dados não são únicos. Eles nos parecem sintomáticos, encarnados numa realidade concreta e não fogem do teor de nossa reflexão. Dou-me a permissão de recordar dez aspectos.

  1. Os jovens são, em primeiro lugar, fortemente desenraizados. Têm, mas não sabem suas raízes. Não sabem onde moram seus avós e não sabem de onde vieram seus pais, atropelados pelo êxodo rural dos anos sessenta e setenta. A história deles é curta. Não carregam uma tradição familiar. Nasceram e foram criados num mundo que não vai além da cerca que rodeia sua casa.

  1. Apesar de desenraizados, são amantes da família. Podem não ser “coletivos”, pertencentes a uma classe, a um povo, a um grupo social, enquanto forma um todo, mas são “familiares”, sonhando uma grande família da qual pouco sabem. Certamente não é uma família que imaginamos, mas eles se dizem – e com muita evidência - familiares. O que significa – num contexto assim - uma juventude ansiando por uma família?

  1. Para estes jovens, um outro discurso forte - que nos parece tristemente lógico - é que o subir na vida se faz só. Seria o caso de perguntarmos quem lhes ensinou essa atitude de vida? Os amigos são importantes, são um mundo “necessário”, mas nada ou muito pouco têm a dizer na luta pela sobrevivência. Além de uma ideologia individualizante, quem lhes transmitiu esse modo de ver e enfrentar uma vida que, por vezes, temos vontade de dizer nasceu no próprio quintal?

  1. Há, para essa juventude, duas coisas dramaticamente muito ruins na vida: ser dependente e ter que conviver com o peso das más companhias. Uma, de raízes mais psicológicas, e a outra nascida logo depois da cerca da casa. A rua que poderia ser sua segunda família, é perigosa. Relacionar-se com os outros é perigoso. A desconfiança tomou conta de seu interior.

  1. Se quase 40% dos pais deles são separados, quase 100% dos jovens afirma a fidelidade no casamento. Não significa que a separação se identifique com infidelidade; o importante é que, apesar de tudo que são obrigados a ver, a utopia que os move é a fidelidade, principalmente a partir dos bairros mais pobres e dos lugares onde a separação dos pais é mais intensa. Atrevem-se a sonhar um lar onde, por muito tempo, haja um pai e uma mãe como companheiros da vida.

  1. Para estes jovens a boa relação familiar é a segunda coisa mais importante na vida pessoal do jovem. Mais ainda: como eles mesmos dizem, além do tráfico, a causa mais forte da violência é a desestrutura familiar. Parece um discurso induzido, mas não é. Pode até ser que a família, por vezes, sufoca a juventude, mas o discurso dela é que com a família não se brinca. Não lhe agradam estruturas sufocantes, porque sabem que nem toda estrutura carrega o destino de sufocar.

  1. Ser desempregado, segundo estes e outros dados, é uma desgraça, um sucesso funesto, uma desgraceira, para estes jovens de 14 a 30 anos. São levados a ver que, o que vale ou o que foram levados a crer que vale, é o trabalho. “Você vale pelo que faz e ganha e não pelo que é”. É o que experienciaram no dia-a-dia de sua infância e, também, na idade que estão vivendo. Caminham pelas ruas procurando emprego como se fosse unicamente obrigação. Percebe-se que a falta de momentos e espaços de lazer não é só devido à falta de oportunidades; é uma atitude de quem não se sente autorizado a cultivar-se, como jovem. A pessoa humana, também o jovem, não tem direito a “não trabalhar”.

  1. A instituição na qual mais confiam é a instituição escolar, expressão da liberdade que sonham e do mundo que desejam conhecer. Entre as instituições citadas não estava a família porque a finalidade da pergunta era a observação das outras instituições. Depois da instituição escolar, vêm as organizações jovens, os movimentos sociais, os meios de comunicação e, em quinto lugar, a igreja católica. Parece que se movimentam, com alegria, no mundo que – para eles – lhe dá mais chance de ser.

  1. Não é revoltante para os jovens do mundo analisado, policial matar bandido, fazer justiça com as próprias mãos, agredir homossexuais e bandido matar policial. Poderíamos dizer que o discurso é do medo, da desconfiança e do preconceito. Parece que o discurso que vale é o reinado da baixa auto-estima. Se eu não valho nada, os outros também não merecem respeito.

  1. Por outro lado – e isso nos pode parecer muito estranho - afirmam-se mais religiosos que seus próprios pais. A mãe é vista, por eles, como a menos religiosa da família porque não lhes agrada conviver com muitas trocas de religiosidades (o que a pesquisa demonstrou) e o que não acontece com os pais. Uma referência existencial, para a juventude, não pula de galho em galho.


Mesmo que sejam dados ainda um tanto exóticos, precisamos reconhecer que as “sementes ocultas do Verbo” – isto é, o discurso que navega em seus corpos sem ter sido convidado - não é somente uma realidade teológica, fundada na fé, nascida unicamente de uma visão transcendental da vida, mas um “discurso” humano escondido, no dia-a-dia no corpo e na vida do jovem, que é preciso saber ler.


Podemos dizer, até, que nestes “discursos” se ocultam e se manifestam cinco espaços onde, para a juventude, mora a felicidade de todo jovem: a) a vivência grupal. O jovem anseia por uma vivência grupal e/ou comunitária. Apesar de todos os convites para individualização, o jovem acredita – em meio às contradições – na vivência coletiva manifestada nas vivências grupais. Há sintomas evidentes – por vezes difíceis de serem percebidos e/ou admitidos - de que nunca, na história da humanidade, houve uma busca tão evidente de vivências grupais consideradas no seu todo e nas mais variadas manifestações. O grupo é o lugar da felicidade de todo jovem mesmo que perceba que o adulto que o rodeia parece ter perdido a crença no coletivo b) a busca de uma formação que seja integral. O jovem intui que essa “formação integral” que sonha não se dá pela informação. Eles sabem e recebem milhares de informações, todos os dias, mas ninguém lhes ajuda a dar um sentido para elas. Bebem água sem saber que essa água poderia ser vinho... Sonham que isso deveria acontecer na educação e que um lugar importante para tal é a instituição escola; c) os jovens sabem que não são iguais, mesmo que todos gostem de falar de uma só juventude. Mesmo sabendo que ser “diferente” traz complicação, eles querem ser atendidos em sua realidade específica, não para serem “melhores”, mas para eles cultivarem sua identidade em companhia de seus pares, em favor de todos. Eles querem autonomia; sonham ser protagonistas, mesmo que isso se consiga através das mais diversificadas formas como, por exemplo, por meio do cultivo da aparência; d) os jovens intuem que, apesar de tudo que isso acarreta, eles precisam ser “organizados”, isto é, serem ativos, fazendo-se sujeitos de sua história e da sociedade. No mais profundo deles, eles querem ser “políticos”. Isto é, construtores de comunidade. Apesar da tentação constante e induzida de serem “massa”, eles desejam ser “povo”, mesmo que isso signifique renúncias de situações que apresentam o lado aparentemente bom e refugiante da dependência; e) intuem que a felicidade não se faz e não se constrói sozinho, mas que é preciso caminhar junto com os outros – também junto com o mundo dos adultos - não para serem mandados, mas para caminharem na segurança, vestidos de passado, de presente e de futuro, aprendendo com a novidade que ainda não é mas pode ser e com o vivido, aprendendo o que é, de fato, “autoridade”. Eles desejam estar num mesmo barco, acompanhados de pessoas de “experiência”, isto é, de passado. Não para serem como elas ou serem mandados por elas, mas aprenderem a novidade que muitas vezes se esconde no já vivido.



(1)“Discursos à beira do Sinos”, IHU, 2006.

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