Ela nos acompanha em quase tudo
Hilário Dick
Mario Margulis, um dos coordenadores de “La juventud es más que una palabra” começa a introdução do livro dizendo que “a temática vinculada com a juventude tem sido sempre complexa e inquietante”. Embora possa ser mais do que verdadeiro, não deixa de irritar por que, afinal, qual a razão dessa dita complexidade? O jovem é surpreendente e, por isso, é complexo? Não deixa de ser verdade que a juventude é vanguarda, portadora de transformações (conhecidas ou imperceptíveis) nos códigos da cultura (sensibilidade, sistema perceptivo, visão das coisas, atitudes frente ao mundo, sentidos estéticos, concepção de tempo, valores, velocidades e ritmos) e incorpora com naturalidade as mudanças cada vez mais rápidas. Isso é inquietude ou complexidade? Qual é o problema em distinguir “adolescente” (12 a 17 anos UNICEF) e “jovens” (l5 a 30 anos)? São os jovens, em geral, os encarregados para tornar evidente a novidade da vida para gerações anteriores. Isso incomoda?
É no plano da “cultura” (mais do que da política e da economia) que se evidenciam as novas modalidades que a juventude vai assumindo perante a sociedade. Diz Margulis, com razão , que “vivemos num mundo em que caducam as antigas garantias no plano do trabalho e na reprodução da vida, que se apoiavam nos saberes, experiência, qualificação e direitos sociais” e aparecem questões que põe tudo em xeque. É isso que complexifica? Os jovens não acreditam mais nas formas em que a “política”, tradicionalmente, propunha oportunidades de participação e transformação. O fato de ser um “desafio”, será que isso toca na conceitualização mais decidida de juventude?
Contudo, somos levados a perguntar-nos mais do que uma vez: afinal, quem é esse jovem ou essa “juventude”? Uma construção histórica e social e não mera condição de idade? Significa algo, enfim, dizer que pode haver vários modos de “experimentar” a juventude? Olhar a “juventude” numa perspectiva cronológica ou biológica, é uma maneira. Contudo, ela, a juventude, não depende só da idade, da classe ou de uma geração. Pode ser é vista, até, como um “sinal” (signo) condicionando uma quantidade de atividades produtivas, ligadas com o corpo e a imagem, comercializando a “juvenilização”. A juventude é mais do que uma palavra... Ela vai-se tornando, igualmente um produto que se vende.
Encarar a juventude na perspectiva cultural, antropológica ou sociológica poderia ser “outra” saída. Fica claro, contudo, que ela é mais do que isso. E se tentássemos ver a juventude como um segmento que se manifesta na história? Não encontraríamos por aí elementos capazes de iluminar o conceito “juventude”? Parece que estamos frente a uma novidade inexplorada. Além do mais, os bispos do Brasil, num belo documento sobre “evangelização da juventude” falam dela como de uma “realidade teológica”. Por detrás disso não poderiam esconder-se revelações que nos façam compreender o que seria, por exemplo, “cultura juvenil”?
Reafirmamos, apesar de tudo, que a idade – com todas as restrições e todos os cuidados que isso exige – aparece, em todas as sociedades, como um dos eixos ordenadores da atividade social. Poder-se-ia dizer que a idade é um “parâmetro” concreto e que precisamos de parâmetros para estudar os fenômenos sociais, também a realidade juvenil. A categoria “juventude” é significativa, seu uso conduz a um marco de sentidos, mas o conceito “juventude” parece localizar-nos – de repente - num marco que – quando menos esperamos – se torna ambíguo, amplo e impreciso com todos e todas querendo ser “jovens”. As coisas pioram quando esta “juventude” se torna, além de tudo, um produto, um valor simbólico associado a características apreciadas, especialmente no campo da estética. A “juventude” tornou-se, de repente, “um modo de ser”...
A situação torna-se, novamente, nebulosa, quando se acrescenta que a “juventude” depende de uma “moratória”, isto é, de um espaço de possibilidades aberto a certos setores sociais e limitado a determinados períodos históricos. Postergam-se exigências (trabalho, estudo, família...) e a sociedade permite que essa “categoria” goze de “certo” período durante o qual ela (a sociedade) lhe brinda uma especial “tolerância”. Essa tolerância é tal que a juventude corre o risco de ser somente um sinal. Uma “estética da vida cotidiana”... Desmaterializa-se o conceito “juventude”. Corre-se o risco de esquecer que a juventude, além de possuir uma dimensão simbólica, também tem que ser analisada desde outras dimensões (aspectos fáticos, materiais, históricos e políticos...) nas quais se desenvolve toda produção social. A juventude-sinal transforma-se em mercadoria (se compra e se vende) e intervém no mercado do desejo como veículo de distinção e de legitimidade. Esta moratória, contudo, seria de uma minoria, não entrando em seu recinto os setores populares.
A juventude é, sim, uma condição constituída pela cultura, mas tem uma base material vinculada com a idade. A condição etária não alude somente a fenômenos de origem biológica (saúde, energia...). Também se refere a fenômenos culturais, antropológicos, sociológicos, históricos etc. Da “idade”, como categoria estatística ou vinculada com a biologia, passamos à idade processada pela história e pela cultura: o tema das gerações. Pode-se dizer que cada “geração” tem ou pode ser considerada como uma “cultura”. Ser de uma “geração” diferente significa ser diferente nas memórias e nas experiências. Percebe-se, de modo diferenciado, por exemplo, a morte, a velhice e a doença. Além de tudo, o papel social e familiar do jovem é ratificado cotidianamente pelo olhar dos outros. Surge, por isso, uma realidade que não pode ser esquecida e que é conhecida como moratória “vital”, complementar à moratória “social”.
Pode-se pensar a juventude – segundo essa nova leitura - como um período da vida em que se está de posse de um excedente temporal, de um crédito, de um “plus” como se tratasse de algo que está de “reserva”, algo que se tem a mais e do qual se pode dispor; um “algo” que nos menos jovens é mais reduzido, se vai gastando e vai terminando irreversivelmente, apesar de todos os esforços para evitá-lo. Essa “moratória vital” é crescente, na pessoa, até a idade dos 30 anos; depois ela, irreversivelmente, vai decrescendo. Dir-se-ia que a juventude tem um espectro de opções que vai, aos poucos, diminuindo... Este “plus”, típico do jovem, é que se chama de “moratória vital”. Em conseqüência, a definição de juventude incorpora também esta faceta “dura”, vinculada com o aspecto energético do corpo, com sua cronologia. Mas é algo mais do que pura biologia. Se tomarmos o corpo como suscetível de ser tratado como uma função-signo, a juventude, seria a dimensão funcional e a cronologia o suporte concreto sobre o qual se articulariam os sinais e sua expressão social. A juventude, contudo, como função, estaria exposta a um desgaste diferencial na materialidade como tal do corpo segundo o gênero e o setor social, deixando de ser mera cronologia para entrar a jogar no plano da durabilidade, linear e mais complexa. A matéria da juventude é sua cronologia enquanto moratória vital, objetiva, pré-social e, até, pré-biológica.
Graças a este critério (ou a este conceito) pode-se distinguir – sem confundir – os jovens dos não-jovens (pela moratória vital) e os social e culturalmente juvenis dos não juvenis (pela moratória social). Tomando a noção de moratória vital como uma característica da juventude, pode-se falar de algo que não muda por classe social ou por cor etc., mas que depende do conjunto de suas forças disponíveis, de sua capacidade produtiva, de suas possibilidades de deslocamento e de sua resistência ao esforço. A juventude, enfim, como “plus” de energia e como moratória “vital”, e não só “social”, como um crédito temporal, é algo que depende da idade. Resultante disso é, também, o que se pode chamar de “memória social incorporada”, diferente em quem tem 20 ou 54 anos. Não é possível deshistorizar nem as estruturas sociais nem pessoais. Ela se vai constituindo no plano da temporalidade. A marca histórica da “época” é determinante, mesmo com suas expressões diferenciadas. A “geração” é uma estrutura transversal, de memória histórica e acumulada; ela não é só questão de “data de nascimento”.
Além disso, a juventude depende, igualmente, do “gênero” e do corpo processado pela sociedade e pela cultura. O “relógio biológico” da mulher, por exemplo, é diferente do “relógio biológico” homem. Ela (a mulher) tem um tempo vinculado com a sedução e a beleza, a maternidade, o sexo, os filhos e a energia, o desejo, a vocação e a paciência para te-los, criá-los e cuidar deles. Afirmamos com isso que a juventude não é somente um “sinal” nem somente “função” nem se reduz aos atributos “juvenis” de uma classe. As modalidades sociais do “ser jovem” dependem da idade, da geração, do crédito vital, da classe social, do marco institucional e do gênero. A juventude é uma condição que se articula, social e culturalmente, em função da idade (como crédito energético e “moratória vital”) ou como distância, frente à morte enquanto memória social incorporada, experiência de vida diferencial e como “moratória social” e período de retardamento, com o gênero, segundo as urgências temporais que pesam sobre o homem ou sobre a mulher e com a localização da família (marco institucional com o qual todas as outras variações se articulam). Tudo isso faz recuperar certa “materialidade” e “historicidade” no uso sociológico da categoria juventude.
O que é fundamental, nessa visão, é que se encontram, neste debate, duas “realidades” que atravessam toda a história da juventude, como tal, e da juventude dentro da realidade social como um todo. Por um lado, a consciência que foi aflorando, no caminhar da história do segmento juvenil, do que seja “moratória social”, principalmente com a Revolução Industrial do século XVIII. Esta “moratória social” é uma expressão dos “adultos” visando a educação dos jovens. Mesmo que tome aspectos jurídicos, normativos e, até, policialescos, é uma atitude pedagógica frente à realidade juvenil. A moratória social foi criada “para” o mundo juvenil, fruto do esforço dos “adultos” para transmitirem aos “jovens” os valores da “tradição”, com um discurso que diz que o mundo não está começando agora e que ele deve ter esta ou aquela dimensão. A “moratória social” é, ao mesmo tempo, um “dom” que se dá ao mundo juvenil, mas um “dom” condicionado. Ela é uma expressão da sociedade para a juventude. A “moratória vital”, por outro lado, é uma realidade que nasce de dentro de todo jovem, “independente” de condicionamentos externos (classe, gênero, cor...). A moratória vital é da “natureza” do jovem. Um dom que lhe foi dado por ninguém “de fora” e se mostra na maneira efervescente, explosiva, indefinida, “incontrolável”, mas “algo” a ser “construído”, “direcionado”.
Estas duas “realidades” não são de ontem nem de hoje. Elas existiram e conflitaram, de formas “infinitas”, em toda a história humana, em todas as culturas (mundo judaico, grego, romano, idade média, idade moderna etc.). Uma das provas é a antigüidade que há no conceito do que é ser criança, púbere, adolescente e adulto. Diríamos que é um conflito visceral que acompanha a humanidade: jovem x adulto do qual não há como escapar. Poderíamos exemplificar isso com os paradigmas que funcionaram e funcionam no “trabalho” junto à juventude. Tomemos dois casos “extremos”: por um lado, tudo que aconteceu no mundo totalitarista do tempo de Hitler, Mussolini e outros e, por outro lado, tudo que sucedeu no que todos conhecemos como “maio de 1968”. A convivência da “moratória social” e da “moratória vital” nunca foi pacífica. O conflito pode estar mais ou menos “mascarado” ou “sob aparente controle”, mas ele existiu e existe, também hoje. Uma forma onde isso aparece é na forma com que se encara, no “trabalho com a juventude” a questão do empoderamento (emancipação) ou do protagonismo juvenil. Não é uma “questão pequena”. Está-se frente a uma questão pedagógica que repercute em todo trabalho com a juventude nas igrejas, nas instâncias governamentais, nos partidos, associações, movimentos juvenis etc. Está em jogo, realmente, o que se quer da juventude e com a juventude. Ir ao encontro, de fato, com a “moratória vital” favorecendo e incentivando o caminho da autonomia ou, tomar uma posição de “controle”, fazendo os jovens sonharem, somente ou em grande parte, com os sonhos dos adultos, dificultando o surgimento da novidade que toda sociedade precisa, embora seja uma “espera” revestida de temor ao imprevisível é uma dualidade que é preciso enfrentar. O “novo” assusta em todos os campos; a emergência da novidade nunca foi nem nunca será tranqüila. Esta é a razão da necessidade de amadurecermos mais a dialética entre “moratória vital” e “moratória social.
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