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quinta-feira, 11 de março de 2010

A DERROTA DE DOM QUIXOTE POR DOIS JOVENS

A força do encantamento e do enfrentamento

Hilário Dick


Se as figuras da “periferia”, em “Dom Quixote de la Mancha” , são secundárias, elas são, de diferentes maneiras, uma remota ameaça para Quixote; as figuras do “cotidiano da vida” entram na história como motivos de entretenimento, dando azo para rir da forma como os jovens enfrentam diversas situações de vivências amorosas. Existem, no entanto, duas figuras que são inimigas mortais para Quixote, levando-o a, no final, considerar-se vencido. São elas Dorotéia, atacando pelo lado do encantamento e da magia – mundo próximo ao qual Quixote navegava - e Sansão Carrasco, centrando fogo, também pelo disfarce, no enfrentamento. Na história de Quixote são estes dois jovens que vão fazê-lo “mudar de vida”, levando-o a o ser primitivo Alonso Quijano do qual Quixote fugia de todas as formas. Importante, por isso, que olhemos mais de perto essas duas figuras juvenis.

O poder do encantamento

Dorotéia é aquela moça abandonada por Dom Fernando que, depois de ter aceitado dormir com ele, vai ser a responsável em convencer a Dom Quixote de sair dos encantos de Serra Morena para voltar para sua casa, pela segunda vez. Ela aparece ao cura, ao barbeiro e a Sancho como mancebo entrajado à lavradora, provocando profunda admiração, chegando Cardênio a chamá-la de “divina”, por sua beleza. Contando a sua história, Dorotéia narra que teria dito a Dom Fernando que ela se considerava vassalo, mas não escrava dele e que a situação de pobre não lhe dava direito a Dom Fernando a desonrar a humildade dela e que o fato de ela ser vilã e lavradora não faz que ela seja menos que ele. Quando Dom Fernando aparece levando Lucinda para sua casa, depois de seqüestrá-la do convento para o qual fugira, após a fala de Dorotéia considera-se vencido dizendo “venceste, formosa Dorotéia, porque não é possível haver ânimo para negar tantas verdades juntas”, aceitando-a como a verdadeira mulher de sua vida.

O cura e o barbeiro, encontrando-se com Sancho que deveria ter ido em busca de Dulcinéia, imaginam uma simulação com o intuito de penetrar, de forma disfarçada, no mundo imaginário de Quixote e, a partir de dentro dele mesmo, obrigá-lo a retornar para sua vida de aldeão, com a ajuda de Dorotéia. Na verdade a pretensão deles é reduzir o personagem a uma prisão mais estreita, fazendo-o voltar para sua aldeia e para sua identidade de fidalgo. O cura é o urdidor da drama e Dorotéia a atriz. Dorotéia fá-lo-á encarnando, de forma excepcional, a personagem Micomicona, declarando auxílio urgentíssimo e vital de Quixote. Versada na leitura de páginas cavaleiresca, estava bem apta para exercer esta função. Vai levar Quixote do engano para a verdade, da paixão para a ação através da máscara de seu disfarce. Como antítese do cavaleiro (Dom Quixote) e verdadeira contra-figura quixotesca, Dorotéia segue os passos de Alonso Quijano, reproduzindo seus procedimentos porém invertendo seu significado para fazer do mundo transformado um mundo fingido. Fá-lo-á mascarando-se de homem e encarnando-se como símbolo de uma situação de abandono amoroso.

Enfim, sem entrarmos na complexidade psicológica dessa personagem de Cervantes nem nas outras tradições de figuras semelhantes da literatura , o que importa é que Dorotéia se propõe arrancar Dom Quixote de sua prova suprema como cavaleiro enamorado, fazendo penitência na Serra Morena. É através de Micomicona (representada por Dorotéia) que ela (Dorotéia) – muito ajudada pela cumplicidade do cura - conseguirá que Dom Quixote se ponha a caminho, prisioneiro, amarrado numa carreta de bois, voltando para sua origem, apesar de dizer “seja quem for, cumprirei o que sou obrigado e o que me dita a consciência, segundo o que professado tenho”. Mais adiante se dá por vencido, afirmando “vamo-nos daqui em nome de Deus a favorecer esta grande senhora”, isto é Dorotéia disfarçada de Micomicona. Antítese de Dom Quixote, Dorotéia utiliza o que sabe dos livros de cavaleiros para acabar com a aventura do cavaleiro, declarando-se necessitada de socorro afetivo. Decidem, por isso, que o cura e o barbeiro poderiam levar Dom Quixote para a sua terra, e ali guarecê-lo de suas loucuras, sem ser necessário que Dorotéia e Dom Fernando o acompanhassem à aldeia (I, 46, 459 ).

Se Quixote, na primeira vez, voltava por vontade própria, na segunda volta como alguém convencido de que precisa voltar para sua casa a fim de ser curado, mas não para deixar seu sonho de cavalaria.

O poder do enfrentamento - a figura Sansão Carrasco

A figura de Sansão Carrasco aparece em diversos momentos. Era “filho de Bartolomeu Carrasco, que vem de estudar em Salamanca e feito bacharel” (II, 2, 31). Quem o apresenta a Quixote é Sancho porque ouvira dele que já lera, publicadas, as histórias de Quixote. Quixote espera-o ansiosamente. “...teria seus vinte e quatro anos, cara redonda, nariz chato e boca grande, tudo sinais de ser malicioso de condição, e amigo de donaires e de burlas” (II, 3, 33). Falam, primeiramente, da obra que Sansão teria lido. Ponderam, por isso, sobre as principais façanhas vividas por Quixote, inclusive criticando, por exemplo, a inclusão de “O Curioso Impertinente” e outros pormenores e, após uns poucos entendimentos, se despediram, pensando Quixote em ir para a direção de Saragoça.

Sansão também está presente quando Quixote está por ir-se, realmente, com grandes resistências da ama recordando como seu amo voltara depois da primeira e da segunda saída (II, 7, 56). Desesperada, a ama vê que Sansão aprova a saída de Quixote, combinando “coisas” com o cura. Os dois, no entanto, Quixote e Sancho, começam sua viagem para El Toboso. Neste caminhar querem passar a noite “ao pé de um sobreiro” (II, 12, 90) e, perto deles, dois homens a cavalo também pensam descansar e, depois de certo tempo, um deles inicia a tocar uma viola. Dizendo Sancho que deveria ser um cavaleiro enamorado, Quixote retruca firme que “não há nenhum dos cavaleiros andantes que o não seja” (II, 12, 91). O azarado (ao menos para Sancho) é que o tal “Cavaleiro da Selva”, além de cantar começa a falar de sua amada Cassildéia de Vandália, afirmando que é “a mais formosa do mundo”, também mais formosa que a mulher dos cavaleiros da Mancha (II, 12,92). Quixote se incomoda e o outro, como a provocar, pergunta se está aflito. Dá-se, então, uma conversa entre os dois cavaleiros e os dois escudeiros, uns falando dos outros.

Memorável é o diálogo de Quixote e do Cavaleiro da Selva confessando-se apaixonado por Cassildéia de Vandália e tudo que já fez por ela, inclusive tendo rendido, “em combate singular, o famosíssimo cavaleiro Dom Quixote de la Mancha, e ter-lhe feito confessar que a minha Cassildéia é mais formosa do que a sua Dulcinéia” (II, 14, 100) e outras coisas. Custou Quixote manifestar-se, mas o Cavaleiro da Selva insistia que teria vencido o Cavaleiro da Triste Figura. É então que Quixote resolve revelar-se quem era dizendo que “Quixote é o melhor amigo que tenho neste mundo, e tanto que posso dizer que é outro eu” (II, 14, 101). Conclusão: pelo “sim” e pelo “não”a verdade se decidiria por uma “sangrenta e singular batalha” (II, 14, 102) entre os dois e onde quem perdesse ficaria à mercê do vencedor (II, 14, 106). É no fim desta “batalha”, vencida por Quixote, que Quixote, espantado, reconhece que o tal cavaleiro era o Bacharel Sansão Carrasco e que o escudeiro dele era Tomé Cecial, vizinho e compadre de Sancho. (II, 14, 108). Mesmo desconfiado que Sansão não seja Sansão faz prometê-lo que era mentira tudo que dissera de sua amada com relação a Dulcinéia. “Tudo confesso, julgo e sinto, como vós acreditais, julgais e sentis” (II, 14, 106) disse o derrancado cavaleiro. E todos vão por seus caminhos, com Tomé Cecial fazendo uma consideração que dizia: “Dom Quixote é doido e nós somos ajuizados; ele vai-se indo, agora, quem é mais doido; quem o é porque não se conhece, ou quem o é por sua vontade?” (II, 15, 111).

Vindo-lhe ao encontro um outro senhor, Dom Diogo de Miranda, é na casa dele que Quixote e Sancho vão parar. Depois vai para a casa de um duque... ficando claro que Quixote, mais do que fazer o que desejava, era levado a fazer o que outros lhe haviam preparado, tendo em mira a cura do Cavaleiro da Mancha. Quixote diria a Sancho que “a liberdade é um dos mais preciosos dons que os céus deram aos homens; com ela não pode igualar-se nem aos tesouros que a terra nem o mar encobre; pela liberdade, assim como pela honra, pode-se e deve-se aventurar a vida e, pelo contrário, o cativeiro é o maior mal que pode acudir aos homens” (II, 58, 401-402). Contudo, em vez de ir para Saragoça, o tropel levava Quixote para Barcelona.

Certa manhã, andando Dom Quixote a passear pela praia de Barcelona, “com todas armas” (II, 64, 457), veio ao encontro dele, também armado, intitulando-se disfarçadamente de “Cavaleiro da Branca Lua”, Sansão Carrasco provocando nosso cavaleiro e dizendo-lhe, logo de entrada, que sua dama “é sem comparação mais formosa do que a tua Dulcinéia del Toboso” (II, 64, 457) e se Quixote não confessasse isso seria morto. A única condição – em caso de ele sair vencedor na luta – seria deixar as armas “abstendo-te de procurar aventuras, te recolhas e te retires por espaço dum ano para a tua povoação, onde viverás sem pôr mão na espada, em paz tranqüila e em proveitoso sossego” (II, 64, 457). Caso contrário, “ficará à tua disposição a minha cabeça e serão teus os despojos das minhas armas e do meu cavalo” (idem). Quixote é derrubado e, estendido no chão, com voz debilitada e enferma, disse: “Dulcinéia del Toboso é a mais formosa mulher do mundo e eu o mais desditoso cavaleiro da Terra, e a minha fraqueza não pode nem deve defraudar esta verdade: carrega, cavaleiro, a lança, e tira-me a vida, já que me tiraste a honra” (II, 64, 459). O Cavaleiro só recorda, diante de todos, o que fora combinado antes da luta e desaparece, novamente, na cidade. O vice-rei , Dom Antônio, Sancho e outros assistiram tudo isso sem proferir palavras.

Querendo saber quem era o Cavaleiro da Branca Lua, Dom Antônio encontra Sansão Carrasco e chega a saber que é da terra de Dom Quixote “cuja loucura e sandice faz com que tenhamos pena dele todos os que o conhecemos, e um dos que mais se compadeceram fui eu” (II, 65, 460) contando o que já fizera em outro momento, sendo derrotado. Dom Antônio diz, então, que “Deus vos perdoe o agravo que fizestes a todo o mundo, querendo pôr em seu juízo o doido mais engraçado que existe” (II, 65,461), achando que tudo tinha sido mal feito. Sansão, no entanto, volta para a sua terra. Quixote foi tratado em seus ferimentos, resistindo aos consolos que Sancho procurava encontrar.

No dia da despedida de Barcelona, Quixote se dá conta do tamanho de sua derrota. Por isso diz que “aqui foi Tróia, aqui a minha desgraça, e não a minha covardia, me tirou as glórias que eu alcançara; aqui usou a fortuna comigo das suas voltas; aqui se escureceram as minhas façanhas; aqui, enfim, caiu a minha ventura para nunca mais se levantar” (II, 66, 465). Enfim, Sancho e Quixote iniciam seu caminho de regresso, este ainda e sempre pensando que, “depois do noviciado”, iria recomeçar suas andanças de cavaleiro, mas sem dar muita atenção a tudo que vinha ao encontro deles. “Se muitos pensamentos fatigavam Dom Quixote antes de ser derribado, muitos mais o pungiam depois de caído” (II, 67, 470). Passando no lugar em que foram atropelados por touros, Quixote sonha em ser, ao menos por um ano, pastor, chamando-se de Quixotiz etc. dando nome a todas as pessoas da história. Sansão chamar-se-ia, por exemplo, de Sansonino ou de Carrascão.

Aparecem, no entanto, alguns cavaleiros que, sem dó nem piedade, levam Sancho e Quixote presos para o mesmo castelo onde haviam passado, onde são bem tratados, considerando que Sansão lhes havia contado tudo que sucedera entre eles. Mas a volta prossegue... Chegando perto da aldeia de Alonso Quijano, “toparam à entrada do povo, rezando num campo, o cura e o bacharel Sansão Carrasco” (II,73, 503). Por fim, “rodeados de rapazes e novamente acompanhados pelo cura e pelo bacharel, entraram no povo e dirigiram-se à casa de Dom Quixote, a cuja porta encontraram a ama e a sobrinha, que já sabiam da sua vinda” (II, 73, 503). Encontrando o cura e Sansão, com toda a simplicidade, conta o que havia prometido em Barcelona, falando, igualmente, dos seus ideais pastoris.

Quixote fica doente de uma febre que o teve seis dias de cama, visitado por todos os seus amigos. O médico “foi de parecer que o que dava cabo dele eram melancolias e desabrimentos” (II, 74, 507). Acordando após muitas horas de sono, Quixote chama a todos dizendo que não é mais Quixote mas Alonso Quijano e que tudo isso de cavalaria havia sido engano. No meio das despedidas e confissões de arrependimento, o cura e Sansão Carrasco tornam-se os testamenteiros de Alonso Quijano, ex Dom Quixote. Morrendo, uma das coisas que não se perdeu foi o epitáfio de Sansão Carrasco, que dizia:


Aqui jaz quem teve a sorte
De ser tão valente e forte,
Que o seu cantor alegou
Que a morte não triunfou
Da sua vida côa sua morte.
Foi grande a sua bravura,
Teve todo mundo em pouco,
E na final conjuntura
Morreu: vejam que ventura,
Com siso, vivendo louco. (II, 74, 511-512).

O golpe definitivo foi dado em Quixote, portanto, depois de sua terceira saída. Quem assume essa responsabilidade é Sansão Carrasco, filho de Bartolomeu Carrasco, cujo itinerário acabamos de descrever, mas que é importante retomar.

1ª intervenção de Carrasco

Quatro são as situações em que a figura desse bacharel está no primeiro plano, na Segunda Parte de Dom Quixote, havendo menções a ele em outros momentos secundários. O primeiro aparecimento se dá nos capítulos iniciais da Segunda Parte. Ambos (Quixote e Sansão) conversam sobre temas atinentes à condição cavaleiresca. A Segunda Parte, pelo informe de Sansão, teria sido escrita por um historiador mouro. Quixote, mesmo antes de encontrar-se com Sansão, mostra-se assombrado, pensando que ele deve ser um encantador, amigo e inimigo. Sansão, de fato, deixa transparecer, de imediato, seu caráter burlesco, malicioso e irônico. Confirma, que existe uma novela que conta a vida de Quixote, com mais de 12 mil livros impressos em diferentes lugares. Quixote sente-se orgulhoso, até perguntando pelas partes que são mais conhecidas e preferidas. Sansão responde, fazendo algumas análises pessoais.

Tendo conquistado a confiança de Quixote, este lhe dá a conhecer que, dentro de alguns dias, sairá de novo a exercer a missão cavalheiresca e pede conselhos em como realizá-la. Sansão recomenda que vá participar de umas justas em Zaragoça. Quixote, contudo, pede-lhe segredo sobre estes seus intentos. Carrasco, por sua vez, torna estas intenções conhecidas para o cura e o barbeiro e decidem por um estratagema pelo qual obrigariam Quixote a voltar para casa. Carrasco se disfarçaria de cavaleiro andante, provocá-lo-ia para um duelo, vencê-lo-ia obrigando-o a cumprir a aposta de voltar para casa, ficando lá por um ano, sem exercer a função cavalheiresca. Por isso, apesar de a ama e a sobrinha lhe pedirem que convencesse a Quixote de não sair, incita-o e, até, se oferece como escudeiro com enorme preocupação de Sancho. É a primeira intervenção de Sansão Carrasco.

2ª intervenção (desastrosa) de Carrasco

O segundo momento em que Sansão exerce o papel de protagonista se dá quando Quixote e Sancho se encontram com o Cavaleiro da Selva, também acompanhado por um escudeiro, sem se darem conta que este Cavaleiro era Sansão Carrasco e que o escudeiro era o vizinho de Sancho, de nome Tomé Cecial, disfarçando-se com a ajuda de um enorme nariz. A forma que Sansão encontra para agredir, inicialmente, a Quixote, foi falar-lhe de sua amada Cassildéia de Vandália, “a mais crua e mais assada senhora que em todo o orbe se pode encontrar”. Sansão até lhe conta que, por amor a essa amada, teria rendido o famoso Dom Quixote de la Mancha e que, nesta vitória teria vencido a todos os cavalheiros do orbe.... Embora Quixote ouvisse tudo isso dominando seus impulsos, tudo acaba por combinarem um duelo, para provar que tudo isso era mentira (ou verdade). Quem saísse vencedor deveria obedecer às ordens do vencedor.

Realiza-se o combate e, para surpresa de Quixote e Sancho, aparece ante seus olhos o rosto de Sansão Carrasco, assim como a realidade do vizinho de Sancho. Tudo lhes parece um encantamento e quem propõe que Quixote mate a Sansão é Sancho porque lhe parecia que era um dos seus encantadores inimigos. Quixote põe sua espada no rosto de Sansão e diz que ele estará morto 1) se não confessar que Dulcinéia del Toboso é bem mais bonita que Cassildéia de Vandália; 2) se ele não for à cidade Del Toboso prestar homenagem à Dulcinéia fazendo tudo que ela mandar, voltando para contar tudo o que passou com ele. Sansão, mesmo que de forma irônica, aceita todas as condições. Sansão tem que confessar, ainda, que aquele cavalheiro que ele teria vencido não era Quixote, mas outro, e Quixote confessa, por sua vez, que embora pareça Sansão Carrasco não era ele mas outro que se parecia com ele. Sansão aceita e volta, disposto a vingar-se, mas não deixando de perguntar-se a si e a Tomé Cecial sobre quem, afinal, seria o louco e quem seria o sadio nesta história.

3ª intervenção (decisiva) de Carrasco

O 3º momento em que aparece Sansão Carrasco realiza-se, em Barcelona, encarnando a figura do Cavaleiro da Branca Lua, desafiando Quixote para um novo duelo. Se Quixote fosse vencido teria que confessar que Dulcinéia não é a mulher mais bonita do mundo e que ele deveria retirar-se, por um ano, de suas andanças cavalheirescas, cuidando de suas terras e da salvação de sua alma. Caso Quixote fosse vencedor, seriam dele os despojos de suas armas e de seu cavalo e seriam dele o resultado de todas as façanhas.

O fato é que Quixote é vencido. Moído e atordoado, Quixote não deixa de dizer que Dulcinéia é a mais formosa mulher do mundo “e eu o mais desditoso cavaleiro da Terra, e a minha fraqueza não pode nem deve defraudar esta verdade: carrega, cavaleiro, a lança, e tira-me a vida, já que me tiraste a honra”. Como diz Cervantes, Quixote fala isso moído e aturdido, como se falasse de dentro de uma tumba, com voz debilitada e enferma. O estado de ânimo de Quixote é confirmado pela reação de Sancho “todo triste e pesaroso, não sabia o que havia de dizer, nem o que havia de fazer. Parecia-lhe tudo aquilo um sonho e cousa de encantamento” (II, 64, 459).

Quando Antônio Moreno, hospedeiro de Quixote, chega a saber quem era Sansão bem como de suas intenções, diz-lhe, no final: “Deus vos perdoe o agravo que fizeste a todo o mundo, querendo pôr em seu juízo o doido mais engraçado que existe”. E Sansão desaparece...

Já contamos, rapidamente, como foi a despedida de Quixote de Barcelona. Uma derrota infinita porque, como o próprio Quixote diz, “aqui se escureceram as minhas façanhas; aqui, enfim, caiu a minha ventura, para nunca mais se levantar”.

4ª intervenção de Carrasco

Dom Quixote marcha, então, para seu destino final onde vão estar presentes, de novo, o cura e o bacharel Sansão Carrasco. Seguindo as orientações dele, Quixote propõe a Sancho e planeja passar o ano de reclusão, ingressando no mundo pastoril, o mesmo espaço em que transcorreu o episódio da fingida Arcádia descrita e vivida em II, 68 inventando, inclusive, o nome que todos teriam. Já de volta para a aldeia, numa confidência com Sansão, não deixa de falar-lhe dos mesmos planos, tendo aprovação dele porque via aí, segundo ele, a possibilidade de curar Quixote e, por isso, se compromete com o mesmo planejamento, envolvendo-se na vida desta Arcádia onde seria chamado, segundo Quixote, de Sansino.

Apesar de todas as suas imaginações, Quixote não sai de suas tristezas e fica doente. O médico que chamaram diz para eles atenderem à saúde de sua alma porque a do corpo corria perigo. Quixote dorme muito... Acordando confessa seu arrependimento da vida cavalheiresca que levou, assumindo-se como Alonso Quijano. Desconfiados de que Quixote entraria por outra loucura o cura, o bacharel e o barbeiro ficam preocupados, mas quem o adverte é Sansão animando-o a que não deixe de sonhar de ser pastor, deixando de lado a vida de ermitão que se lhe apresentava. Quixote pede um confessor para ficar bem com Deus e um escrivão para deixar ordenadas as coisas do mundo. O escrivão seria Carrasco.

A inclusão de Sansão Carrasco na novela de Dom Quixote, portanto, é chave. Pode-se afirmar com absoluta certeza que, mediante sua figura, de forma representativa, se pode reconstruir todo o mundo quixotesco de 1615. Suas intervenções são fundamentais no andar quixotesco e constituem, junto com a atitude de Dorotéia, o verdadeiro motor da ação. Não falamos de Dulcinéia porque é uma criação utópica e, em nosso caso, seria muito difícil enquadrá-la no mundo juvenil que procuramos analisar. A conclusão que se pode tirar, portanto, é que são duas figuras juvenis que decidem o processo de retorno para a normalidade de um personagem que se havia deixado pelo mundo imaginário e louco de um cavaleiro andante. Quem dá o golpe mortal à cavalaria, por isso, são dois jovens: uma moça e um rapaz.

Conclusão

Entre as formas de descobrir a juventude na história, dizíamos no início, destaca-se o estudo que pode ser feito sobre as obras literárias na perspectiva juvenil, isto é, na leitura e estudo de romances (de todos os tipos), teatros e poesias (de todo tipo) e descobrir o lugar que a juventude tem nessas obras. Não se trata de ocupar-nos com as obras que, de forma explícita, falem de juventude ou que foram escritos tendo em vista o mundo juvenil, mas da obra como tal onde o autor/a, através dos enredos, histórias, criação de personagens – não pensando falar de juventude – revelam, na maioria das vezes sem querer - o lugar que aí tem a juventude. Não seria um estudo na perspectiva literária, sociológica, psicológica, cultural, antropológica etc. mas um estudo da realidade juvenil “Dom Quixote”, de Cervantes que, provavelmente deva ter presente todos estes aspectos ou paradigmas.

Escolhemos esse viés neste estudo, acrescentando-lhe outra especificidade: o protagonismo juvenil, isto é, perguntando-nos pelo papel que os jovens que aí aparecem, descritos de forma artística, exercem na história, isto é, na sociedade em que vivem. Eles são silenciados ou dá-se-lhes algum papel protagônico, decidindo alguma coisa? O enredo do romance, da tragédia ou da comédia depende da atitude desses jovens? Qual o lugar que a juventude tem nessa obra, neste autor, nesta sociedade etc. Perguntamo-nos isso supondo que é nestas formas “inconscientes”, “não pensadas”, “naturais” que o jovem é reconhecido, ou não, naquilo que ele é e representa tanto para o autor/a como para a sociedade em que o autor/a vive.

Levou-nos para isso a curiosidade que temos com o tema “juventude na história” e, de modo especial, estudando a forma como Giovanni Levi e Jean-Claude Schmitt escreveram os dois volumes intitulados “História dos Jovens”. É verdade que eles não fazem isso, mas a forma como apresentam a imagem dos jovens na cidade grega, o mundo romano na perspectiva juvenil, os jovens na idade medieval etc. não deixam de apontar para essa forma de estudar a questão. Já fizemos a experiência em vários autores e pareceu-nos muito elucidativo, fazendo a juventude emergir, na história, de outra forma. É bem possível que Goethe, Shakespeare, Zola e os infindos literatos com os quais nos divertimos e formamos talvez nos digam que não era isso que haviam pensado, mas o que decide a questão é o que eles escreveram, o que inventaram, o que contaram, o que descreveram etc. Atrevemo-nos a ler, nesta perspectiva, “Dom Quixote de la Mancha”, de Miguel de Cervantes Saavedra. Mesmo de forma sintética, apresentamos o resultado da leitura de Cervantes nesta obra. Não nos preocupamos (nem teríamos condições para isso) com a obra de Cervantes como um todo. O que descobrimos, na perspectiva geral que assumimos, é o seguinte:

1. Cervantes, em “Dom Quixote”, não demonstra, em geral, grande apreço à juventude. Baseamo-nos nas figuras juvenis que acentuamos em nosso estudo. Tentamos caracterizar estas figuras em três níveis, desde o desprezo até a admiração. São secundários e desprezíveis, de modo especial os jovens pobres (que são poucos) e as prostitutas (que ele ridiculariza no linguajar e no modo de as considerar). Ao mesmo tempo, contudo, são estas figuras que recordam a Quixote a sua origem, tornando-se, por isso, para Quixote, até uma longínqua ameaça. Elas, de modo geral, são conscientes de sua situação e da loucura e dos “enganos” de Quixote. Constituem, por isso, mesmo de forma ligeira, uma ameaça para Quixote, deixando-o iinseguro. Valem como exemplo a sobrinha e o rapazito dos açoites. São uma ameaça, igualmente, Maritornes e a filha do vendeiro que, além de “tentá-lo” em seus princípios de fidelidade à Dulcinéia, põe-no a ridículo, amarrando-o na janela. Por outro lado, é muito contraditório o fato de Quixote aceitar que sejam duas prostitutas as que o invistam, junto com o dono de uma hospedagem, de cavaleiro. Assim como é uma forma de satirizar Quixote e os cavaleiros, é uma forma de dizer que as prostitutas são desprezíveis.

2. Quando falamos das figuras juvenis encarnando o “cotidiano”, vemos que a grande maioria dos jovens em “Dom Quixote” se situa nesta caracterização, fica claro que os jovens estão aí para fazer o povo rir de seus dramas e desgraças. Os jovens, em “Dom Quixote” são os “bobos da corte” cuja grande finalidade é entreter a sociedade. Insistimos, por isso, no entretenimento. As histórias de amor – porque os jovens de “Dom Quixote” são levados a viver disso – é a forma que Cervantes usou para inventar uma longa história para Quixote. E ele, como Quixote, não é só Quixote: é a sociedade de seu tempo rindo-se deles e rindo de si mesma. Eles divertem, mesmo com seus dramas e suas fugas, seus sofrimentos e ingenuidades, uma sociedade que precisava disso para disfarçar que ela – a sociedade – está de bem com a vida. Podemos dizer, até, que o próprio Cervantes encontra nessas histórias juvenis, uma maneira de rir de sua própria vida e da vida de seus familiares.

3. Uma realidade que merece ser recordada, são as fugas que “Dom Quixote” encontra para as figuras juvenis. Falamos de três “espaços”: a morte (suicídio), a fuga para o campo e a fuga para o convento. Os três espaços carregam uma seriedade para a leitura da sociedade de Cervantes. Sabemos que a Espanha de Cervantes sofria de uma pauperização alarmante, onde o desespero e a insegurança tomava conta de muita gente, assim como vimos na própria história de Cervantes. O suicídio, a fuga para o campo e o refúgio nos conventos não era um assunto que não penetrava no coração do povo, e também dos que não eram ricos. Aliás, quase todas as figuras juvenis que localizamos no “cotidiano da vida” não se situam no mundo dos pobres. Até os lavradores descritos são ricos. Para as mulheres a questão do “dote” não era, na época, um assunto superado. Muito menos o autoritarismo familiar na escolha dos futuros maridos e esposas.

4. Um ponto que merece destaque em “Dom Quixote” são algumas atitudes e alguns discursos das mulheres. Em meio à opressão afetiva são elas que saem a campo para defender seus direitos contra o domínio machista e paterno existente. Nesse sentido, as figuras que se destacam são Marcela, Dorotéia e, de forma menos significativa, Lucinda. Em geral, contudo, são descritos (moças e rapazes) dominados pela paixão amorosa, sem ter outra causa a lutar. Os jovens estão aí para a sociedade esquecer-se de seus problemas e ter motivos para rir e chorar. Dom Quixote, em grande parte da novela, é aquele que ouve, se emociona e não pode fazer coisa alguma. Talvez nem queira...

5. Mesmo que não possamos negar que nessa situação juvenil, até agora descrita e analisada, exista um protagonismo juvenil, mesmo às avessas – porque é a juventude que desmascara mazelas profundas da sociedade – há duas figuras que foram olhadas de modo muito particular. Quem derruba e vence o superado cavalheirismo ainda em vigor na sociedade espanhola são dois jovens: Dorotéia e Sansão Carrasco. Conseguem-no através do encantamento envolvente de Dorotéia, representando magistralmente a figura de Micomicona, e através do encantamento agressivo de Sansão Carrasco, tendo que passar por um processo de descoberta e de estratégia para conseguir o seu intento. Quem faz Quixote entregar-se e voltar à realidade, quem faz os cavaleiros andantes serem motivo de riso e de algo que já passara, foram dois jovens. Nesse sentido, as figuras juvenis, em “Dom Quixote”, não são somente importantes, mas se tornam os grandes protagonistas daquilo que Cervantes sonhava descrever. Sem cair em exageros, na perspectiva juvenil, Cervantes confirma que – mesmo silenciados, mesmo encarados como desprezíveis ou como meros “bobos da corte” da sociedade, os jovens não deixam de revelar-se, de forma “inconsciente”, “não desejada”, “não admitida” como sendo protagonistas numa sociedade que não quer e não deixa que eles, os jovens, sejam importantes e influam no avanço sadio dela mesma. Descobrir isso numa obra como “Dom Quixote de la Mancha” não deixa de ser um convite para a juventude, na história, ser estudada nas obras literárias no viés do protagonismo juvenil que nunca deixou de ser real.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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