Hilário Dick
Muitas coisas de juventude nunca vamos saber... No mundo e na América Latina. Não é exagerado dizer que a juventude, na história, é um assunto pouco explorado porque é um assunto que está, ainda, debaixo do tapete. As razões podem ser as mais variadas, com mais e menos preconceito, com mais e menos argumentação científica. Funcionam paradigmas; funcionam modos de olhar o segmento que chamamos “juventude”, diferente de “infância” e de “adolescência”; funcionam culturas; funcionam adultocentrismos históricos As razões de nossos esquecimentos ou de nossos escondimentos até são misteriosos. Por isso, apesar de tudo, dizer que, na história, a juventude é um grito silenciado, mas real, torna-se dia por dia uma convicção mais sedimentada. Ontem como hoje, não só na história “oficial”, a juventude - que tanto precisa dizer que está aí - é obrigada a viver na invisibilidade.
Se nos atrevermos a perguntar pelo que foram os jovens, na América Latina, certamente teríamos uma resposta semelhante à pergunta pelo motivo porque foram esquecidas, por exemplo, as mulheres na mesma América Latina. Por que essas perguntas teriam, ou não, sentido? Para quem trabalha com jovens, esta pergunta tem, ou não, razão de ser? O que pode significar para um jovem ou, então, para um pedagogo, um questionamento com esse teor? Se a consciência histórica é importante para a construção de uma personalidade, o que significa olhar a juventude acontecendo na história? O fato de a história ser adultocêntrica não deixaria de lado um aspecto que faz falta para ela ser mais objetiva? As decisões que influem na caminhada de um povo, de uma nação, de uma região, não teria nada a ver com a ausência das manifestações juvenis naquela época, naquele local, naquela cultura, naquela política, naquela economia? O que faz que algo seja “importante”, fonte de leitura e compreensão? Se acreditamos que, na construção da personalidade, o fenômeno do empoderamento juvenil é importante, o que teria isso a ver com uma leitura da juventude acontecendo na história? Por outro lado, isso seria somente uma preocupação pedagógica para agentes que trabalham com o segmento juvenil, no campo da educação?
Houve um tempo em que se ouvia, com freqüência, a frase de Che Guevara afirmando que um povo sem memória é um povo sem coluna vertebral. Além de isso ser verdade, é um fato que a Bíblia dos cristãos, por exemplo, é formada por livros onde a memória é fundamental. Todos reconhecem que ter consciência da caminhada feita faz parte da personalidade de alguém e sabemos que a consciência crítica descrita por Paulo Freire e outros pensadores tem muito a ver com a história, seja pessoal, seja social. Refletir sobre o vivido é parte integrante de qualquer pessoa e não só para chorar sobre o leite derramado. Como se relacionam o passado, o presente e o futuro? Para um jovem que vai assumindo ou é convidado a abraçar a vida que lhe pertence e que lhe toca construir, que sentido teria uma consciência histórica? A história de uma outra geração não teria nada a nos “ensinar” na geração que vivemos?
Enfim, são muitas as perguntas e não é por mera veleidade que nos atrevemos a iniciar um estudo sobre a juventude acontecendo na história de alguns países da América Latina. Após termos navegado por séculos , atrevemo-nos a navegar por geografias. Tudo tem seu limite, mas tudo pode ter seu sentido. As histórias se encontrariam? Haveria um “todo” que poderia valer para todos ou ficaríamos em pequenas mônades, tendo cada uma delas suas caminhadas, ficando em sua particularidade? O universo que pretendemos abranger, nesta primeira experiência, são nove países: Uruguai, Paraguai, Argentina, Chile, Bolívia, Peru, Brasil, México e Guatemala. A escolha foi, de certa forma, aleatória, orientando-nos culturas que provocam especial curiosidade, como é o caso dos guaranis, dos incas, dos charruas, dos aimaras e dos astecas, “civilizações” que, na perspectiva juvenil, sempre despertam perguntas. A distância temporal e as próprias “culturas” das quais falamos, oferecem barreiras e somente um estudo bem mais detalhado poderia trazer respostas mais satisfatórias. Contudo, é preciso começar.
Civilidade e barbárie
Começaremos com algumas observações que poderiam servir de conclusão, mas ajudam a situar as reflexões que seguem. Luis Alexandre Cerveira, através da análise de um aspecto bem específico no relacionamento com o mundo indígena, especialmente no Sul da América do Sul , aponta para uma dimensão que é preciso ter em conta estudando a juventude em países como Argentina, Uruguai, Paraguai e Chile, por um lado, e Peru, Bolívia, Guatemala e México, de outro. O que fica evidente é que uns estão mais próximos daquilo que chamamos de cidade, isto é, da “civilidade”, e que os outros se movimentam, claramente, no campo, nas enormes planícies que abrangem Uruguai, Argentina, Paraguai e o Sul do Brasil, considerados como espaços daquilo que se apelida de “rudeza” e barbárie. Falando, por exemplo, de “paixão”, Cerveira diz que “a vivência das paixões, no campo, traz em si uma característica que a singulariza. O ambiente rural parece ter sido o espaço por excelência do viver sem amarras, de um viver espontâneo e sem grandes contenções, facilitado por uma ocupação humana esparsa e pelas longas distâncias dos centros urbanos” (189). Que repercussões teria isso junto à juventude nos dois espaços e no tratamento que a juventude receberia por parte dos adultos?
Parece que fica evidente que há duas situações que mereceriam ser aprofundadas, também na perspectiva histórica: os jovens mais próximos ou mais afastados da realidade “urbana”, “citadina” ou, então, mais próximos do “campo” ou, como diz Cerveira, da “barbárie”. Diz este autor, por isso, que “o antagonismo entre barbárie/campo e civilização/cidade não mais saiu da pauta daqueles que se propuseram a pensar a formação do estado, da sociedade e, por conseqüência, do agir destes grupos humanos” (189). Faz menção, logo em seguida, à clássica relação feita por Hobbes em sua obra “Leviatã”, em que o estado de “natureza” é uma situação de barbárie, na qual os homens estão sob o controle de suas paixões, sem nenhum limitador externo. Logo, “sua proposta de implantação de um Estado passa pela supressão das paixões através da mão forte do Leviatã” (189).
Pensamento semelhante é defendido pelo argentino Domingo Sarmiento em Facundo: civilização e barbárie (1939) e retomado por José Carlos Barran em Historia de la sensibilidad en el Uruguay” (1991). Para este “la historia de la sensibilidad en ese Uruguay del siglo XIX es la de la lenta desaparición del pathos e la también lenta aparición del freno de las ´pasiones interiores´” (191). O relacionamento do mundo espanhol com o mundo aborígine, encarnando orgulhosamente uma visão “civilizatória”, não deixaria de ter suas conseqüências. Também os jesuítas das reduções não escaparam disso e, por isso, o discurso deles da “reforma dos costumes”... Estava em jogo, portanto, uma questão radical de choque de civilizações e que não deixava de repercutir, de forma muito especial, no mundo juvenil.
Se podemos dizer que o/a jovem é o ser humano onde a paixão tem suas primeiras manifestações, a situação se torna mais complexa, ainda, quando temos que concordar com Cerveira dizendo que “a sensibilidade bárbara tem como característica a predominância de um comportamento pautado por excessos, um comportamento que, no geral, não se dobra às ordenanças clericais, estatais ou judiciais” (193). São enormes as conseqüências dessa situação, diferenciadas, se pensamos, por um lado, em mundos como o dos charruas e dos guaranis e, por outro, no mundo dos aimaras, dos incas, dos maias e dos astecas. Isso porque devemos considerar que “o excesso e o descontrole são características fundamentais da paixão, e que é possível afirmar que a sensibilidade bárbara predominante no campo é uma sensibilidade em que a paixão é a protagonista” (193). Teria isso algo a ver, por exemplo, com a forma com que os charruas e os mapuches lutaram contra o invasor espanhol? Por um lado temos o envolvimento do mundo dos “civilizados” e, por outro, o mundo dos “brutos”, como falavam os jesuítas, dando ao termo um significado muito especial. “A idéia que fica é que estas populações estariam em um estado de ´barbárie´, de selvageria, já que ´se retiran ellos a lugares apartados y a la espesa selva, como si fuesen fieras” (194).
O tempo da invasão
Essa é a primeira reflexão no início desse estudo sobre a realidade juvenil nos nove países que vamos encontrar. A segunda relaciona-se com o tempo da “invasão” espanhola. Tudo parece ter acontecido ao mesmo tempo... em extensões imensas. No Uruguai os espanhóis chegaram em 1516 com feroz resistência dos índios charruas; no Chile Pedro de Valdívia chegava em 1541, defrontando-se com os mapuches; no México, quando Cortés invadia aquelas terras, a capital dos astecas se chamava Tenochtitlan que rondava pelos 300 mil habitantes; no Paraguai Domingos Martinez de Irala se encontrava com os guaranis pelos anos de 1536; no Peru, Pizarro encontrou-se com os incas em 1531; na Bolívia chegava, em 1535, Diego de Almagro e 29 anos depois a cidade de Potosi já tinha 120 mil habitantes; e na Argentina (no mesmo ano que Uruguai), Juan Dias de Sólis, com oposição de culturas variadas, oficializava a conquista do território em 1516. Era o mundo espanhol destacando-se em seus avanços por um continente onde os aborígines nunca foram respeitados. Como diria Darcy Ribeiro, tentava-se formar nações através de um povo europeu transplantado, onde os aborígines não puderam ter sua voz.
Silêncio intrigante
A terceira reflexão também se refere a épocas. É intrigante, por exemplo, o silêncio – no viés juvenil – dos séculos 17 e 18, o tempo em que as colônias se separavam dos seus poderes de dominação. Contudo, a localização da afirmação dos países aqui considerados através da independência, é impressionante. A Argentina celebra sua independência em 1816; o Chile faz o mesmo em 1818; a Bolívia em 1825; o Peru em 1821; o Paraguai em 1811; o México em 1821; o Brasil em 1822 e o Uruguai em 1828. Estávamos, portanto, no século 19. Movimentações que são conhecidas, antes do início do século 19, são a Inconfidência Mineira, no Brasil; a maior rebelião indígena das história das Américas liderada por Tupac Amaru entre 1780 e 1781, no Peru; de alguma forma a revolta dos guaranis resultando na morte de Sepé Tiaraju na região do Paraguai, nas décadas de 1760; as brigas dos autonomistas na Argentina; as sublevações de Chuquisaca em Sucre (Bolívia) e nada de especial no Chile. Quem teria preparado, no entanto, os gritos de independência que explodiriam no século 19? A juventude teria algo a dizer nesta história?
Manifestações da gritaria
Um outro dado refere-se à outra coincidência: a inquietude política e cultural do começo do século 20, na mesma época em que, na Europa, floresceriam as realidades do fascismo (Itália), do nazismo (Alemanha) e do falangismo (Espanha). No Uruguai aparece a figura de Enrique Rodo que, aos 28 anos, lança uma obra intitulada Ariel e que repercutiria muito além das fronteiras, como foi o caso do Chile. No Chile aparece, igualmente, a figura do poeta Vicente Huidobro, com grande influência na Federação dos Estudantes do Chile que, em 1918, fundam a Universidade Popular Lastarria. Por outro lado, impressiona a presença do nazismo entre a juventude chilena que, além de se tornarem conhecidos pelo massacre do Seguro Obrero, mais tarde fundariam o que seria, o Partido Democrata Cristão. Na Argentina, uma obra influente é El hombre medíocre, de José Ingenieros (1917), apelidado pelos universitários como Maestro de la Juventud de América Latina. Um fato que marca a América Latina é a revolta dos universitários de Córdoba, em 1918. No Uruguai, quem toma o comando da caminhada é o battlismo, isto é, de José Battle y Ordoñez, fazendo reformas substanciais na política e na vida social, sendo presidente de 1903 a 1915. No México, na mesma época, acontece o que é conhecido como Revolução Mexicana, aparecendo as figuras de Emiliano Zapata, de Pancho Villa e, um pouco depois, uma guerra civil de caráter religioso conhecida como Guerra Cristera; no Brasil, além da Semana de Arte Moderna, temos manifestações do movimento tenentista de 1922 e a reação juvenil integralista com a figura de Plínio Salgado; no Peru aparecem figuras influentes como Victor Haya de la Torre, fundador do aprismo, em 1923, assim como José Carlos Mariátegui, fundador do Partido Comunista Peruano que, aos 25 anos, se tornara tão conhecido que teve que ser exilado.
O fato é que Silêncios Juvenis Latino-Americanos não deixa de ser um atrevimento. Trata-se de desbastar um campo complicado. Mesmo não tendo condições de adonar-nos de documentos históricos, até essenciais, temos consciência que é um primeiro passo. A pretensão é lançar pistas, talvez primárias, mas pistas.
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