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quinta-feira, 11 de março de 2010

1968 ECLESIÁSTICO

Quanto mais se lê sobre o “Maio de 1968” mais perguntas aparecem. Foi um ano louco e enigmático, provocado pela juventude. Até Sartre, que estava em Paris, naquele ano, confessava dois anos depois, que “ainda estava pensando no que havia acontecido e que não tinha compreendido bem. Não pude entender o que aqueles jovens queriam...” Dizem outros que 1968 foi um ano mítico, ponto de partida de transformações em muitos campos. Assim como foi uma espécie de orgasmo, foi igualmente um saco de decepções. Será que foi a frustração que suscitou o despertar das drogas, da violência, da guerrilha e do terrorismo urbano? De fato, foi isso que aconteceu. Será que a Guerra Fria foi, realmente, tão acachapante? Depois de 40 anos ainda perguntamos pelo que sucedeu...

Com vontade de compreender “algo mais”, isto é, “perceber” o que aconteceu, vai essa crônica. De forma bem simples, procura ler o mesmo fato a partir de uma frágil vivência pessoal, tentando colocar entre os ingredientes da sopa alguns aspectos “eclesiásticos”. Talvez colaborem na ampliação do que então se viveu, para saboreá-lo melhor. Em 1968 eu estava em São Leopoldo, na Faculdade de Teologia Cristo Rei, um ano antes da ordenação sacerdotal, dando aulas de literatura brasileira e estudando teologia. Há dois anos deixara de vestir batina para andar de “clergymann”, assim como a maioria dos meus colegas. Eram, também, os primeiros anos em que podíamos participar da celebração eucarística em português, tocando violão e guitarra e cantando coisas do P. Zezinho...

Paris estava longe de nossas preocupações, mas sei que não estávamos parados. Nas aulas de Teologia encontrávamos professores que tinham que assumir as novidades do Concílio Vaticano II, o que nem todos conseguiram. Alguns, além de “tomar água”, largaram o barco. Sei que éramos inquietos, críticos, querendo mudanças. Na visita que o Padre Geral da Companhia de Jesus – Padre Pedro Arrupe, um homem excepcional e no qual não sabíamos encontrar defeito – fez ao “teologado”, no encontro que os estudantes de Teologia tivemos com ele, ainda hoje me lembro como a autoridade dele não bastou para – com espanto dos superiores – segurar a nossa intranqüilidade. Havíamos redigido um calhamaço de setenta páginas de reflexões e reivindicações querendo Teologia e formação diferentes. Éramos estudantes de vários países e de várias regiões do Brasil. Além disso, uma das coisas pela qual batalhamos era por ter – dentro da disciplina de um teologado jesuítico – um Diretório Acadêmico articulado com outros Diretórios das Faculdades da cidade, formando a “Federação dos Estudantes Universitários do Rio dos Sinos”. Naquele Congresso azarado da UNE, em Ibiúna (SP), também tinha jesuítas... Incomodava-nos o fato de ser um teologado “reconhecido”, e não termos uma revista de Teologia sob nossa responsabilidade. Já que os professores não tomavam a iniciativa, os estudantes fizeram nascer o que é, hoje, “Perspectiva Teológica” levado em frente pelos professores da Faculdade dos Jesuítas de Belo Horizonte.

Lá fora e lá dentro era 1968... Ano do Ato Institucional nº 5, ano das guerrilhas urbanas, ano de uma repressão miserável: professores demitidos e exilados, operários controlados e espancados; estudantes sem liberdade de se organizarem; o povo tendo que submeter-se à vigência de dois partidos (um a favor e o outro contra); com salas de aula infestados de “dedos duros” pagos para encontrar subversões. Lembro-me do dia em que os militares pularam pelas janelas do Teologado, procurando seminaristas subversivos. Frei Beto conseguira fugir, mas outros (estudantes e padres) foram levados prisioneiros para serem interrogados. Contudo, nem a Teologia da Libertação havia sido, ainda, sistematizada... É verdade que o então P. Hugo Assmann agitava os pensamentos de um grupo de padres fazendo um curso de reciclagem, falando coisas fora de costume. Estávamos, todos, no auge da moratória vital, mas vivíamos sem ter muita consciência. Nem de 1968.

Olhando, contudo, para além da janela eclesiástica, víamos – sem entender muito - que a JUC e a JEC eram declaradas extintas pela Conferência dos Bispos, tendo como cabeça de comando nosso cardeal D. Vicente Scherer, arcebispo de Porto Alegre, respeitado por todos, também pelas forças militares, embora o tenham deixado – certa noite – sem roupa, no bairro Medianeira de Porto Alegre. Era um horror. E eu me preparava para ser ordenado padre. Quando D. Ivo Lorscheider voltou da Conferência Episcopal Latino-Americana de Medellín trazia debaixo dos braços as conclusões do evento, disposto a publicá-las sem pedir muita licença para ninguém, muito menos para os militares. E foi o que fez. Era a tradução, para a América Latina, das conclusões do Concílio Vaticano II que terminara em 1965. Uma cópia dessas Conclusões guardo, ainda hoje, com reverência, entre os livros que procuro guardar. Entre as muitas novidades da Conferência, falava-se – talvez pela primeira vez – de juventude, referindo-se a ela “como força de pressão social”... Lembro-me que, na época de preparação dessa Conferência, fui levado a estudar o “Documento de Buga” (cidade da Colômbia), amadurecendo a reflexão sobre a juventude universitária. Por um lado desarticulava-se um movimento de jovens católicos traduzindo a fé dentro da realidade social, política e econômica, e, por outro, olhava-se esta juventude como sendo a expressão da novidade, reconhecendo nela uma “força social de pressão”. Estávamos em 1968.

Por um lado havia uma movimentação enorme de “Comunidades Eclesiais de Base”, de renovação litúrgica, de planejamento pastoral e, por outro, já em 1969, era morto, em Recife, o P. Antônio Pereira Neto, que trabalhava com estudantes. Quando era assassinado Martin Luther King, nos Estados Unidos, surgia em São Paulo um tipo estranho de evangelizar a juventude – especialmente universitária – através de um movimento chamado “Emaús”. Sua pedagogia de impacto movida por sentimentalismos aprendidos nos Cursilhos de Cristandade, era vendida para universitários proibidos de ser organizarem. Nascidos numa Espanha católica, nos encontros de Emaús era proibido falar de política. De estranhas raízes militares, foi um sucesso, conseguindo tornar aceita uma religião apresentada com uma finalidade inconfessada, isto é, de voltar a ter uma religião muito necessária para alguns: uma religião que fosse “ópio do povo”. Ao mesmo tempo recordo que, neste mesmo ano, aparecia no Rio Grande do Sul uma figura estranha de jesuíta, representando e apresentando uma articulação bem diferente de trabalho com a juventude. Falava-se, então, de uma “Pastoral da Juventude”, isto é, da ação organizada de jovens procurando ser Igreja. Esta figura poucos a conhecem, mas era uma novidade. Ela se chamava P. Jesús Andrés Vela, jesuíta. Como me lembro de um encontro com eles, em Gravataí, espalhando esperanças e propostas nascidas no seio de uma Igreja que sonhava ser comunhão e participação, encontrando pessoas – como eu – procurando saídas para a evangelização da juventude dentro de um contexto que imaginávamos fosse de libertação. Estava saindo do orgasmo da minha moratória vital...

1968, em termos eclesiásticos, não brotou fora da realidade e não deixava de situar-se neste ambiente que misturava sofrimento e busca ansiosa. Além de muitas outras iniciativas (Renovação Litúrgica, Catequética, Pastoral..), o que me ocorre recordar é o movimento dos “Cristãos pelo Socialismo” e a organização dos “Padres do Terceiro Mundo”. Que coisa mais genial! Para muita juventude e muitos adultos a revolução socialista estava na esquina e era preciso assumi-la. Se a Conferência Episcopal de Medellín marcou a Igreja da América Latina é que ela foi a expressão de realidades que já vinham acontecendo. No Chile, a expressão da novidade era D. Manuel Larrain, antes da vitória e morte de Allende.

Se fizesse análises de conjuntura no ano que precedeu minha ordenação sacerdotal, estas coisas talvez ficassem mais claras, mas não se pensava nisso. Ao menos nós... Agora estou olhando para trás para dar-me conta que 1968 estava, também, dentro de mim. Quando eu tinha 27 anos dava-se o golpe militar no Brasil e, um pouco antes o mundo chorava o assassinato de Kennedy; quando eu tinha 34 anos dava-se o golpe militar na Bolívia; quando eu tinha 36 anos dava-se o golpe no Uruguai e se assassinava Allende no Chile; quando tinha 39 anos Videla castigava a Argentina com outro golpe... Um pouco antes, contudo, quando tinha 17 anos suicidava-se Getúlio, aos 18 caía Perón na Argentina, aos 22 anos caía Fulgêncio Batista em Cuba. Pelo lado eclesiástico, quando tinha 21 anos fundava-se a CLAR e aos 22 anos nascia em Quito o Centro de Informações da JOC e quando tinha 30 anos matava-se a Ação Católica Especializada. Sem deixar de falar, contudo, que quando eu nascia, a Juventude hitlerista reunia milhões, a juventude fascista era um sucesso e a juventude falangista incomodava a Espanha. Que mundo contraditório gira em nossas veias... Por isso, 1968 é esta pergunta enorme que a juventude gritou para o mundo, também dentro das Igrejas. Como seria agradável saber que entre os 9 milhões de franceses em greve de 18 de maio até 7 de junho de 1968 também estavam seminaristas que nem nós, sonhando novidades. Ou estariam eles entre aqueles que morriam de tédio por estarem fora dos acontecimentos que ocorriam ou iriam brotar mais além? Assim como a Primavera de Praga, as Brigadas Vermelhas, os Montoneros, os Tupamaros, os mortos na Praça de Tatlelolco e infindos outros lugares. Não foi por acaso que na Marcha dos Cem Mil, em 26 de junho de 1968, no Rio de Janeiro, a novidade foi a presença de padres, religiosos e freiras aderindo aos protestos porque 1968 também estava atrás dos muros eclesiásticos.
Hilário Dick

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