QUANDO NÃO BASTAM DISCURSOS ...
Radicalmente contra esta redução, como muitos
outros, encontro-me estonteado frente a pessoas que afirmam o contrário. Tonto
porque as razões não convencem; tonto porque é cruel demais. Trabalho com adolescentes
e jovens há mais de 40 anos e não entendo que uma verdadeiro/a educador/a
esteja a favor de uma proposta dessas. Sinto-me estonteado, igualmente, com os
meninos e meninas de 15 a 17 anos afirmarem o mesmo, vendo seus
“companheiros/as” condenados por praticarem atos ilícitos, mesmo que os
argumentos fiquem, na maioria das vezes, em lamentáveis mas isolados crimes
chamados de hediondos.
Alguns documentos da Igreja afirmam que o jovem é “lugar
teológico”, ou seja, uma das expressões do rosto de Deus. Frente a isso, como
se dá o posicionamento da Igreja frente à redução da maioridade penal?
·
A resposta da Igreja Católica é
um “não” decidido, mesmo que ela não saiba o que é afirmar que o jovem é uma
realidade teológica ou, então, um lugar teológico. Mesmo que esta Igreja seja
mais decidida quando se trata de aborto do que quando o discurso é o extermínio
de jovens, ela é contra. Não só porque o adolescente é uma realidade teológica, mas porque é uma
questão de amor, de respeito e de humanidade. Só uma sociedade que não se ama,
isto é, tanatófila, pode querer, como medida educativa, um presídio para
adolescentes, ainda mais presídios que estamos acostumados a ver, onde – não só
por casualidade - os “condenados” são negros, pobres e jovens.
Aprovar a redução da
maioridade penal é tomar uma postura classista, onde o pobre não existe ou
deveria ser morto. Como é que se entende que uma sociedade seja tão violenta
que não compreenda que a percentagem mínima de homicídios cometidos por
adolescentes mereça tal castigo? Não se nega que o/a adolescente possa cometer
atos hediondos. Contudo, o que é hediondo? O que faz que pessoas corruptas,
roubando o dinheiro do povo em milhões e bilhões, não estejam cometendo crimes
hediondos?
É evidente que está em jogo o
paradigma que se tem, olhando o segmento adolescento-juvenil. Ou é um segmento
que é visto que não tem preparo; ou um segmento que é o futuro, isto é a
solução futura de todos os desafios; ou um segmento que é um problema, que só
sabe o que não se deve fazer. Percentagem pequena defende o paradigma que aposta
no adolescente e no jovem, ajudando-o/a a construir sua autonomia. Talvez a
questão paradigmática seja bem mais simples: inventar uma lei que atinja essa
meninada pobre que assalta, rouba, ameaça, faz arruaça porque se sentem
agredidos por um mundo de adultos que se esqueceu que também foi adolescente.
Existe uma participação da mídia quanto à formação desta
opinião ou é apenas uma desinformação quanto às medidas socioeducativas a que
são submetidos adolescentes e jovens infratores?
·
Quem ensina a violência? Quem
é violento: a sociedade ou os meios de comunicação? Os adolescentes são
violentos porque eles querem ou porque são obrigados a sê-lo? Não se trata de
uma desinformação, mas de um modo de ser. Apesar de haver muita bondade no mundo,
não há dúvida que há muita violência. Há muitas formas de matar, de ferir, de
humilhar, de desprezar. Mesmo que haja tido erros com relação à prática do Estatuto da Criança e do Adolescente
porque somos levados a ver, no adolescente e na criança, somente seus deveres e
não seus direitos? O que faz que a sociedade tenha medo do segmento juvenil,
principalmente quando se trata de pobre, de negro e de periferia? Fazer
perguntas é parte da reação diante de uma situação chocante. A sociedade em que
vivemos, as famílias que enxergamos desaprenderam a educar. Vivemos num mundo
que parece que desaprendeu a ter limites e de ensinar limites.
A
função da sociedade para com a juventude está explícita tanto no Estatuto da
Criança e Adolescente (ECA) quanto no recém-sancionado Estatuto da Juventude.
Questões como assegurar saúde, alimentação, educação, esporte,
profissionalização, dignidade, respeito, liberdade e convivência familiar e
comunitária estão presentes em todo o texto. Qual o motivo que distancia tanto
a teoria da prática? Porque, de fato, nossos adolescentes e jovens se veem
privados de tantos direitos?
·
A resposta precisa ser dura: estão-nos
acostumando a sermos comandados pela aparência. Nem a palavra nem a lei valem.
Vivemos num mundo farisaico onde a simplicidade e a sinceridade de um Francisco
provoca admiração e espanto porque é costume ver outras coisas. A distância
entre o real e o ideal é muito grande. Fazem-se leis e estatutos para o inglês
ver... Não há ética; há negócio. Não há moral porque só vale o que dá vantagem
para meu bolso. Não se trata de idades; não se trata de conceitos; trata-se de
sentimentos, de humanidades, de alteridades. Não se trata de discursos. É um
debate que mexe com a sociedade, mas foge dos verdadeiros problemas. É um
engodo. É verdade que a corrupção esteve e está na rua, mas também é verdade
que em certos ambientes a discussão não é o que seja corrupção mas a maneira
como se pode enganar mais as leis.
·
Qual o interesse do debate sobre a
redução da maioridade? Todos sabem que não é a vontade de combater a violência.
Todos sabem o que é ter raiva quando somos assaltados, quando somos ameaçados
por um canivete ou uma arma (por vezes de aparência), quando somos roubados de
coisas queridas; será que esta raiva que se experimenta, o adolescente não
sente na pele vendo o que se faz com ele em muitos espaços? Não se defende olho
por olho mas é muita cegueira não enxergar que os adolescentes visados pela
redução são imagens da sociedade na qual vivemos.
Fazendo
uma análise de conjuntura e percebendo a realidade dos presídios no país é
possível pensar que aprisionar adolescentes e jovens que cometem delitos em
celas seja a melhor forma de ressocialização?
·
A resposta deve ser descarada assim
como é descarada a pergunta. O que se quer não é a ressocialização; o que ser
quer é a morte, o extermínio. São raivas transformadas em vinganças. Claro que
são possíveis regenerações ou ressocializações, mas não é em celas como se
vêem. Haveria ressocialização de corruptos, ladrões de quantias que nem se
contabilizam? O desafio é a educação; o desafio é a mudança, a conversão. Qual
a diferença entre os ensaios de crime de adolescentes e os crimes de verdade
dos adultos?
Considerando o Estatuto da Criança e do Adolescente e o
Estatuto da Juventude, pode-se considerar que a redução da maioridade penal
como um retrocesso?
·
Na busca de soluções pode
haver muitas tentativas. Os Estatutos dos quais se fala foram, para uns um
avanço e para outros uma calamidade. Sempre dependemos de visões de mundo onde
entra em jogo o real amadurecimento das relações, isto é, da convivência humana.
A questão de paradigmas mexe com o mais profundo das posições das pessoas, onde
os absolutos, os respeitos, as belezas, as personalidades, os amores, as
diversidades, as honestidades, as sensibilidades, as alteridades, as visões de
mundo comandam as leis e a elaboração de leis. Algo ser denominado de
“retrocesso” ou “avanço” depende tudo isso e muito mais. Trata-se de responder
a que? Parece que um dos grandes motivos da discussão é a diminuição da
violência. Para diminuir a violência a solução não é a que se defende com uma
redução da maioridade. A questão é outra, muito mais radical: uma sociedade que
não seja nem pratique a violência. Ver a solução no debate da redução da
maioridade penal é um enorme engodo, uma infinita mentira, um retrocesso lastimável.
Não é uma solução racional; é um sentimento descontrolado que tem chance de se
manifestar.
O
pensamento reacionário, simplista e infeliz que afirma que “já que é bom, leva
para morar com você” é muito presente no discurso de grande maioria das pessoas.
Qual a intenção das instituições e pessoas, como a mídia e os políticos, quando
apregoam pensamentos como este?
·
Primeiramente, é um discurso que de fato se ouve. Significa:
só aceito conviver com pessoas perfeitas, completas, paradas, que não incomodam.
Prefere-se que “o outro” seja sempre uma criança que não tem condições de
responder e é condenada a aceitar, desarmada (talvez revoltada) os gestos de
amor e de manipulação dos quais é objeto. É um egoísmo soberano que não se tem
coragem de expressar, mas que é posto em prática no fundo dos armários
existenciais. Certas coisas se decidem no escuro, às escondidas. É a aparência,
a hipocrisia, a falsidade.
Não adianta recordar algumas conclusões
sobre a redução da maioridade, isto é, que menos de 3% do
total dos crimes violentos cometidos no Brasil têm adolescentes como autores;
que a legislação brasileira relativa às crianças e aos adolescentes é
considerada modelo pela ONU; que temos 54 países que reduziram a maioridade
penal e em nenhum houve redução da violência; que reduzir a maioridade penal
isenta o Estado do compromisso com a juventude. Nem adianta argumentar com um pequeno pronunciamento do Papa
Francisco em abril de 2015:
·
Não descarreguemos sobre as
crianças as nossas culpas [...] O que fazemos das solenes declarações dos
direitos humanos e dos direitos da criança se depois punimos as crianças pelos
erros dos adultos? [...]
·
Toda criança marginalizada,
abandonada, que vive pelas ruas mendigando e com todo tipo de expedientes, sem
escola, sem cuidados médicos, é um grito que sobe a Deus e que acusa o sistema
que nós, adultos, construímos.
O que falta, em todo esse debate, é o encanto
pelo/a adolescente e pelo/a jovem. Ser encantado pela juventude é amá-la, estar
perto dela, ser curioso com o que sucede com ela, estudá-la, dar a vida por
ela, escutá-la. É ser apaixonado por ela. Comer com ela do mesmo pão... É não
ter medo dela. Em Copacabana, o Papa Francisco (2013), além de insistir no
acompanhamento aos jovens, dizia: Não
tenham medo de ir e levar Cristo para todos os ambientes, até as periferias
existenciais, incluindo quem parece mais
distante, mais indiferente. Estamos
falando de um compromisso com a vida da juventude. O que é preciso é o
encantamento com as periferias existenciais, isto é, com as periferias que
necessitam de cuidado. Compromisso que passa por uma pastoral de processo, pelo
cuidado com os/as jovens, pelo respeito à juventude, pelo conhecer a realidade
juvenil, pelos sonhos dos jovens, pela opção de conhecer e carregar com os/as
jovens suas cruzes e pelo encanto por ela.
É muito bonito, igualmente, ouvir o Papa Francisco falar aos jovens
que sejam revolucionários: Eu peço que vocês
sejam revolucionários, que vão contra a corrente; sim, nisto peço que se
rebelem: que se rebelem contra esta cultura do provisório que, no fundo,
crê que vocês não são capazes de assumir responsabilidades, que não são capazes
de amar de verdade. Tenham a coragem de “ir contra a corrente”. Tenham a
coragem de ser felizes! Misturam-se, nas palavras, a revolução, o ir contra a
corrente, a rebeldia, a superação do provisório, o incentivo à crença na
felicidade. Nas palavras dele, soube misturar alegria, compromisso, amor aos
pobres, proximidade, coragem, rompimento de normas: atitudes que encantam,
especialmente os jovens, porque a vocação deles/as é serem desviantes, mesmo
que isso nos incomode e faça ter medo.
Quando tudo isso provoca medo ou é negado, é difícil um
diálogo sobre aquilo que se ama.
Nenhum comentário:
Postar um comentário