1. Sintomas de um mal-estar
Quando Inácio de Loyola, em seus Exercícios Espirituais, dedica umas regras para sentir com a Igreja (EE 352-370) 1, a Igreja vivia tempos difíceis, da mudança do cristianismo medieval para a modernidade e para a Reforma. Não queremos comparar aqueles tempos com o nosso, nem pretendemos reformular as regras inacianas para hoje. Queremos, apenas, perguntar-nos como viver a dimensão eclesial da nossa fé cristã no contexto do mundo de hoje, em um momento de crise eclesial.
Os que viveram na primavera conciliar do Vaticano II na década de 60, não podem deixar de surpreender-se com a situação atual da Igreja, 40 anos depois do Concílio. Ao entusiasmoe euforia pós-conciliar, acontece uma atmosfera de confusão, perplexidade, críticas, rejeição, frustração, medo, auto-censura e dissidência com respeito ao magistério hierárquico, diminuição da prática dominical e, em geral,sacramental, a queda vertiginosa de vocações ao sacerdócio e à vida religiosa, auto-marginalização, negligência da Igreja, indiferença. Muitos dizem: "Jesus sim, Igreja não". Tem-se falado da existência de um cisma silencioso dos milhares que abandonam a Igreja Católica. Há cristãos sem Igreja, há crença sem pertença eclesial. Outros não se desinscrevem da Igreja, experimentando uma sensação de impotência, raiva, dor, medo, silêncio e tristeza eclesial. As mulheres, especialmente, sentem-se numa situação limite na Igreja, com o risco de que a Igreja, que perdeu os intelectuais e os trabalhadores em séculos passados, agora perca as mulheres. Alguns afirmam que "uma outra Igreja é possível " e há aqueles que postulam um Vaticano III. Outros acreditam que esta situação não é sustentável, mas, é explosiva e pode estourar algum dia ...
É verdade que esta crise eclesial não é uniforme: é encontrada, principalmente, no mundo desenvolvido, mais fortemente na Europa e, de modo especial, na Espanha. Mas, mesmo no terceiro mundo e, particularmente, na América Latina, onde escrevo estas páginas, existem sinais claros de que esta situação está também atingindo segmentos conscientes de cristãos especialmente no mundo dos jovens. Não podemos ignorar que muitos grupos populares da América Latina, de fato, deixam a Igreja Católica para ir para as seitas, enquanto outros grupos se afastam da prática da Igreja e vivem um divórcio entre fé e vida. A Igreja tornou-se um problema, um escândalo, um impedimento para a fé, um sinal de contradição.
Estamos longe das palavras triunfalistas do Vaticano I afirmando que a Igreja é um grande e perfeito sinal de credibilidade (DS 3013-3014). Também fica longe a declaração de Romano Guardini, no início do século XX, que a Igreja estava despertando em nossas almas. Alguns teólogos haviam prognosticado que o século XX seria o século da Igreja. Este período que culminou com as duas constituições do Concílio Vaticano II sobre a Igreja, Lumen Gentium e Gaudium et Spes, parece ter-se fechado.
2. Diagnóstico das causas desta situação
Deve-se reconhecer que os problemas, no seio da Igreja, são hoje o que mais afetam os cristãos pouco lúcidos. A lista de dificuldades é longa e bem conhecida. Embora os meios de comunicação tenham divulgado amplamente o escândalo de abuso sexual por padres e bispos, não foi isso, certamente, o que mais chocou o povo de Deus.
2.1. Problemas dentro da Igreja
Escandaliza mais o centralismo eclesiástico, a fraqueza crescente das igrejas locais e suas conferências episcopais, a falta de respeito pelos direitos humanos dentro da Igreja, a doutrina da moral sobre a sexualidade e sexo (celibato, casamento, contracepção, homossexualidade ..) e da bioética, a proibição da Eucaristia para os divorciados, o processo para a nomeação de bispos e para eleger o bispo de Roma, a exclusão das mulheres do ministério da igreja de muitos centros de decisão, fazendo estancar as vozes proféticas (entre os teólogos, na vida religiosa e até mesmo entre os bispos ...), a obsessão com a ortodoxia e a falta de diálogo com o mundo da ciência bem como a busca do poder e a “segurança da Igreja", bloqueando
a teologia da libertação, a atual forma de exercício do primado, a manutenção de estruturas de cristandade medieval (Estado do Vaticano, núncios, cardeais...), a estagnação do ecumenismo, o medo do diálogo inter-religioso, a pouca aceitação da opinião pública e "dissidentes" na Igreja, o pequeno espaço dado aos leigos, fechando o caminho para outros ministérios, incluindo a ordenação de homens casados mais idosos (viri probati), o alinhamento da hierarquia com governos não apenas conservadores, mas ultra-conservadores e ditatoriais, uma Igreja que se mostra mais preocupada com seus direitos e interesses do que com o povo e os pobres, etc. Observe-se que, praticamente, todas estas dificuldades têm a ver com a hierarquia da Igreja, tanto romana como local. Vamos voltar a refletir sobre este aspecto.
2.2. Como é que chegamos a este situação?
Embora o Vaticano II estabelecesse os princípios gerais para uma eclesiologia de comunhão, em muitos casos, não conseguiu chegar a concretar as decisões para a implementação desta comunhão eclesial. Além disso, na euforia da primavera conciliar, houve excessos e abusos que assustaram os líderes da Igreja. Era compreensível que, depois de séculos de fechamento da igreja, abrindo as janelas da Igreja do Espírito, se produzissem desconcertos e exageros. É como uma avalanche de neve, na primavera, nas montanhas, após o rigoroso inverno. Começou, então, uma atmosfera de temor, já com Paulo VI, e que perdurou até o final do pontificado de João Paulo II. Isto conduziu a uma posição de retirada, que tem sido chamado de involução eclesial (revista Concilium), de restauração (GC Zizola), de inverno na igreja eclesial (Rahner), de volta à grande disciplina (J.B. Libânio) noite escura (J.I. Gonzalez Faus). G. Alberigo, historiador do Vaticano II, diz que parece quea minoria que o Vaticano II, de alguma forma, marginalizara, agora volta para erguer as bandeiras da tradição anti-modernista, anti-liberal, anti-protestante e anti-comunista.
É verdade que, no final do pontificado de João Paulo II, já havia alguns sinais de tensão, como se o Papa no final de sua vida, percebesse que tinha que reverter essa situação e apontar para um novo estilo de Igreja. Em 1986, em Assis, se reuniu com representantes de todas as religiões do mundo para falar de justiça e paz. Em 2002, após o ataque terrorista de 11 de setembro, convocou outra reunião com a mesma finalidade. Em sua exortação Apostólica antes do terceiro milênio, 1994, pede a toda a Igreja para retornar ao espírito do Concílio Vaticano II e renove a opção pelos pobres. Na Carta Encíclica Ut Unum Sint (1995) sobre o ecumenismo, João Paulo II exortou todas as igrejas cristãs para repensarem com ele o papel do primado de Pedro na Igreja. Significa que ele percebera que a forma atual do exercício do primado romano se tornara mais um sinal de divisão do que de unidade entre os cristãos. No ano do Jubileu de 2000, ante o espanto de muitos, o Papa pede perdão pelos pecados da Igreja, especialmente pelos do segundo milênio.
2.3. Causas extraeclesiais
Mas, ao lado destas, existem outras causas extraeclesiais. A crise atual da igreja deve situar-se dentro do contexto sociocultural profundo de nosso tempo. A Igreja que, no Vaticano II, depois de séculos de rejeição, timidamente se abriu à modernidade, está, agora, perplexa com os avanços técnicos, a globalização e a nova mentalidade pós-moderna. A consciência do pluralismo religioso e da possibilidade de salvação fora da Igreja, afirmada pelo Concílio Vaticano II (NA 1, LG 16, AG 9, GS 22) criou um novo problema sobre o valor salvador das religiões não-cristãs, dos seus fundadores e seus atos, sobre o conceito e o significado da evangelização, da necessidade de diálogo inter-religioso, etc. Todas estas questões parecem minimizar a sensação de unicidade e centralidade de Cristo, a necessidade e função da Igreja na história da salvação, a sua missão de evangelização.
Este é o ponto mais quente, o olho do furacão da teologia moderna, que parece se mover da América à Ásia, a liberação de diálogo inter-religioso. Além disso, a modernidade secular questiona o próprio conceito de Deus, falando da morte de Deus (Nietzsche), da eclipse de Deus (Buber), da crise de Deus (Metz), da época de crise epocal (Küng), do final do período que termina com 6.000 anos de crença religiosa (Jaspers, Pánikker), das religiões sem Deus (Metz), da ausência e silêncio de Deus na cultura da imanência (Martín Velasco). Tillard pergunta se somos os últimos cristãos: os bancos estão cada vez mais vazios, a igreja está com sempre mais cabelo branco, os seminários estão desertos... K. Rahner previa que o cristão do século XXI seria místico ou não seria cristão ... O Cardeal Walter Kasper expressou bem esta situação nova, afirmando que o Vaticano II tinha sido demasiadamente eclesial, enquanto o problema, hoje, é apresentar os pressupostos humanos da fé e o acesso humano da fé em Deus. Tudo isso nos mostra que a crise da Igreja vai muito além das questões da sexualidade ou a nomeação de bispos; a questão que se coloca vai na direção do conceito de Deus. A crise eclesial não é só de reforma das estruturas, mas teológica. Dada esta situação ainda faz sentido falar de sentir com a Igreja, sentindo-se na Igreja, Igreja de sentimento?
Sem ser exaustivo, propomos algumas pistas, embora tradicionais, que muitas vezes foram esquecidas ao longo da história da Igreja. Estas verdades esquecidas estão mutuamente implicadas, mas, para maior clareza, vamos descreve-las separadamente.
3. Procurando caminhos: algumas verdades esquecidas
Nesta crise da Igreja todas as tentativas para resolver problemas, convocar os fiéis à obediência, ao silêncio, não para criticar... estão fadadas ao fracasso. Precisamos de uma nova iluminação teológica, uma nova catequese, uma nova introdução à experiência fundante da igreja.
3.1. Deus é maior do que a Igreja
Não se pode começar a falar sobre da Igreja, sem primeiro falar de Deus. Se os santos da história tem sido homens e mulheres da Igreja, é porque, antes de tudo, eram homens e mulheres de Deus, místicos, que tiveram uma profunda experiência de Deus. Teresa de Jesus, uma das grandes mulheres da Igreja, no meio de suas dificuldades com a instituição-Igreja tem a liberdade de dizer, em seu famoso verso, que "só Deus basta, Isso só". “Deus é o suficiente" é a expressão de um profundo amor, de mística, de vivência do mistério de Deus.
A Igreja é, realmente, um mistério: é humana e divina, é uma mediação de Deus, mas é Deus que, em sua infinita soberania e amor, transborda todas as limitações humanas. Deus é maior que a Igreja, que todas as instituições e as estruturas da Igreja peregrina. O Vaticano II afirma claramente no Capítulo VII da Lumen Gentium: "Enquanto houver novos céus e nova terra (cf. 2 Petr 3, 13), a Igreja peregrina leva consigo em seus sacramentos e instituições, que pertencem a este tempo, a imagem deste mundo, e ela mesma vive entre as criaturas que gemem entre as dores de parto, até agora, esperando a manifestação dos filhos de Deus (cf.Rm 8, 19-22) "(LG 48).
Por esta razão, no Credo dos Apóstolos, a Igreja aparece como uma espécie de quarta pessoa da Santíssima Trindade para ser adorada, diante da qual há de se ajoelhar, mas a Igreja entra no Credo, juntamente com seu artigo terceiro: a profissão de fé no Espírito Santo. Na verdade, só o Deus Trino, Pai, Filho e Espírito são o objeto e o fim de nossa fé, e não diretamente à Igreja. Acreditamos nela que está na presença do Espírito Santo, trabalhando em um modo especial, perdoando os pecados; é o agente da ressurreição da carne e nos dá a vida eterna. Voltaremos a esta relação entre o Espírito e a Igreja. Aqui só queremos priorizar o teológico: o teológico de Deus sobre a Igreja. Se a Igreja é um mistério é porque é parte do mistério de Deus agindo no mundo.
Necessidade de uma mistagogia
Ligando isso com o que afirmamos sobre a atual crise da fé num mundo secular, podemos concluir que, sem uma profunda experiência de fé no mistério de Deus, absoluto, inefável, infinito, sem limites, profundo e incondicional, que nos informou em Cristo como vida e salvação, sem essa experiência fundamental, não se pode acessar à Igreja.
Por isso a tarefa mais urgente a Igreja de hoje é iniciar uma experiência pessoal e imediata de Deus, para facilitar o acesso a uma mistagogia, sem a qual todas as outras mediações eclesiais são infundadas. Não se podem propor dogmas ou verdades da Igreja de acreditar, ou padrões morais para atender, se não houver a introdução de uma experiência que nos leva a "beber o nosso bem próprio" (San Bernardo, tomada por Gustavo Gutiérrez), isto é, ser não houver um encontro, em nós, com a fonte de água viva que jorra para a vida eterna (Jo 4, 14). Sem esta experiência de fé, a nossa visão da Igreja é reduzida ao de uma realidade mais simples e mundana, uma organização sócio-cultural simples, uma espécie de ONG, organização humanitária ou cultural, tais como a UNESCO, a ONU ou a Cruz Vermelha. Esta visão da Igreja aparece muitas vezes nos meios de comunicação e sempre corremos o risco de ficar com essa percepção, meramente externa e sociológica.
3.2. Prioridade do Reino sobre a igreja
Nos últimos anos, a teologia cristã redescobriu a importância de escatologia e a centralidade do Reino de Deus na cristologia. O centro da pregação de Jesus de Nazaré não era a Igreja, mas o Reino (Mc 1, 15). O Reino é um projeto trinitário de Deus de comunicar-se com o mundo, através de sua vida própria, começando a salvar a vida humana de todo o sofrimento e de todo o mal. Suas parábolas e milagres são sinais de Reino que já começa a estar presente (Lc 11, 20). A famosa frase do modernista A. Loisy: "Jesus veio pregar o Reino, não a Igreja " pode ser lida criticamente, como se a Igreja não tivesse acontecido só contra a intenção de Jesus. Mas pode ser uma leitura positiva no sentido de que nos faz perceber que o Reino é maior do que a Igreja e a Igreja, dirigida ao Reino, é a semente do Reino (LG 5), seu símbolo, o seu sacramento, um sinal profético do Reino.
Existe, portanto, uma tensão entre Igreja e Reino e esse conflito ocorre em todo a história da Igreja com seus erros e pecados; é uma Igreja peregrina caminhando em direção à escatologia de Reino de Deus, mas que ainda não chegou (LG VII). Isto significa que a Igreja não pode ser centrada em si mesma, não pode ser eclesiocêntrica; seu foco tem que ir além dela, para fora.
Consequentemente, a Igreja não pode ficar fechada em seus membros, sua doutrina, sua liturgia, seus sacramentos, suas leis, mas deve ser uma igreja servidora, no mundo, preocupada não só com os direitos de seus filhos, mas de todos os direitos humanos. No fundo, não é mais do que seguir o caminho de Jesus, que não veio para ser servido mas para servir (Mc 10, 45). Quando Jesus lança seu programa missionário, em Nazaré, diz que ele foi ungido pelo Espírito para pregar a boa nova aos pobres, a libertação aos cativos, dar vista aos cegos, para proclamar o ano da graça (Lc 4, 16-22 .) A seus discípulos também os manda anunciar o Reino, curar os doentes e livrar os endemoniados (Lc 9, 1-6). O Reino não é uma utopia bonita e distante, abstrata e genérica, mas algo muito concreto: a libertação do sofrimento e de tudo que está errado. É por isso que Jesus dirige a sua missão à vida, à liberdade do sofrimento e da morte, para proclamar o perdão e a graça, especialmente para os pobres, marginalizados e excluídos da sociedade: os doentes, pecadores, mulheres, crianças, pessoas mal vistas pelos líderes de Israel. Quando surge a Igreja, após Páscoa e a vinda do Espírito, deve seguir os passos de Jesus. Por isso não se limita a pregar a palavra (querigma) e para celebrar a Eucaristia (Liturgia), mas para servir os pobres (diakonia), como Bento XVI recordou na sua encíclica Deus é Amor (n º 25).
Do povo de Deus ao povo dos pobres
A Teologia se interessou mais com a Igreja como uma instituição religiosa e Povo de Deus do que para as pessoas pobres e marginalizadas, para os quais Jesus realiza milagres, alimenta, perdoa, porque sente pena delas. Isto significa que, ao longo da história, a Igreja tem vindo centrando-se em si mesma e tem relegado a orientação mais ampla para o Reino de Deus e os pobres (óchlos). Quando João XXIII dizia, pouco antes do Concílio, que a Igreja tem de que ser, acima de tudo, a Igreja dos pobres, só é fiel à mensagem e à vida de Jesus. Além disso, ao longo da história, a Igreja tem-se identificado, freqüentemente, com o Reino de Deus, como se ela fosse já o Reino de Deus presente na terra. Isso tem sido evidente na forma como a igreja institucional, seus ministros, suas estruturas foram santificadas, esquecendo a sua natureza simbólica do Reino. A Igreja do Cristianismo, que durou dezesseis séculos, até ao Concílio Vaticano II, é um exemplo desta tentação teocrática e davídica da Igreja.
Outra consequência, segundo a qual o Reino é maior do que a Igreja, é que ela não é a possuidora exclusivo de salvação e o Espírito foi derramado sobre toda a carne e age fora de suas fronteiras, não só nas outras Igrejas cristãs, mas em todas as religiões e culturas da humanidade. A afirmação de que "fora da Igreja não há salvação" é apenas uma expressão desta identificação triste que ocorreu entre a Igreja e o Reino de Deus. No fundo, afirmar que o Reino é maior do que a Igreja, é uma conseqüência da afirmação anterior, de que Deus é maior do que a Igreja. Isso não significa que a Igreja não tenha sentido, ou não deva anunciar o evangelho de Jesus a todas as nações, batizar e celebrar a Eucaristia. Tudo isto significa a Igreja é um sinal profético, um "prognóstico", nas palavras de Santo Tomás, um sacramento, na expressão Vaticano II (LG 1, 9, 48).
3.3. A Igreja é pecadora
Estamos tão acostumados a falar e ouvir sobre a "Santa Igreja" que pode parecer estranho ouvir que a Igreja é pecadora. Isso chocou os conservadores da Igreja, para os quais a Igreja é imaculada, sem mancha nem rugas. Mas também surpreende setores progressistas, para quem a Igreja de Cristo deve ser fiel ao evangelho e, portanto, uma Igreja infiel ao Evangelho não seria a Igreja de Cristo. É a tentação de puritanismo. Ao longo da historia não faltaram grupos puritanos que pediam que se expulsasse os pecadores da Igreja, que se escandalizavam porque a Igreja perdoava os pecados, que tentavam separar-se das grande Igreja para formar uma Igreja de puros e santos, uma Igreja do Espírito.
Tertuliano, o montanismo, os Novacianos, os donatistas, os cátaros e os albigenses medievais, os espirituais de Joaquim de Fiore, os Fraticelli Franciscanos, os hussitas, os reformadores, mesmo do século XVI, todos eles criticaram os pecados da Igreja e tentaram construir uma Igreja verdadeiramente santa, para além da Igreja corrupta de seu tempo. Mas o evangelho nos diz que apenas na eternidade será separado o ruim do bom; agora coexistem o trigo e o joio (Mateus 13, 24-30, 36-43), o peixe ruim e bom (Mt 13, 47-50). Na Igreja há pecadores aos quais sempre se oferece o perdão. Todas as exortações sobre o juízo final e a punição, expressa em estilo apocalíptico, tudo que você quer é chamar para a conversão. Consequentemente, a Igreja que peregrina sobre a terra não é apenas formada de pecadores, mas ela mesma é pecadora, porque a Igreja não é um ideal abstrato, mas uma realidade concreta.
Há uma tendência puritana que tende a esconder o pecado em toda a Igreja. É curioso que, na cúpula de São Pedro, se possa ler as palavras que Jesus fala para Pedro, nas palavras de Mateus: "Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja" (Mt 16, 18), mas omite as palavras duras, em seguida, no mesmo Evangelho, onde Jesus diz a Pedro: "Afasta-te de mim, Satanás! Tuas palavras são um obstáculo para mim "(Mt 16, 23). Ou seja, Pedro é, ao mesmo tempo, alicerce e pedra de tropeço. Se isto se pode dizer do primeiro pastor da Igreja o que se pode esperar do resto dos fiéis? Deus escolheu para sua missão homens e mulheres frágeis e pecadores, os fracos e os desprezados pelo mundo, para que ninguém se gloriasse na presença de Deus (1 Cor 1, 26-29). O pecado da igreja está ligada à dimensão humana da Igreja.
Casta prostituta
Portanto, os Padres da Igreja, sensíveis a este fato doloroso e chocante para muitos, dizem que a Igreja é "casta meretrix", que significa "prostituta casta". Os Padres aplicam à Igreja os números das prostitutas do Antigo Testamento: Raabe (Josué 2, 1-21, 6, 17 - 25), Tamar (Gn 38; Mt 1, 3), a esposa de Oséias (I 2) , Babilônia (Jr 50-51, Rev. 17-19). Lutero não é o primeiro a dizer que a Igreja tem caído sob o cativeiro da Babilônia, mas são os bispos e escritores da igreja primitiva que aplicam à Igreja estas imagens. O Vaticano II, embora evite o termo “Igreja pecadora”, afirma claramente que a Igreja abraça, em seu seio, pecadores que precisam de uma contínua purificação, de penitência e conversão (LG 8). Somente Maria é sem mancha nem ruga (LG 65), os demais ofendemos continuamente o Senhor e precisamos, continuamente, pedir perdão (LG 40). No decreto sobre o Ecumenismo diz-se que a Igreja não precisa somente de purificação e renovação (UR 6), mas de "reforma" contínua (UR 8), usando as mesmas palavras que os reformadores do século XVI reivindicavam. Falando do ateísmo moderno se afirma claramente que, muitas vezes, os cristãos "têm obscurecido ao invés de revelar o rosto autêntico Deus e da religião "(GS 19).
Por isso não podemos olhar apenas para o Igreja pecadora como algo fora nós, como se fôssemos sem pecado. A Igreja pecadora carrega os nossos pecados, que obscurecem o rosto da Igreja e a tornam menos transparente para o Evangelho. Somos todos pecadores e precisamos da misericórdia de Deus. Não podemos escandalisar-nos como os fariseus, vendo que Jesus comia com os pecadores e perdoava os pecados. Aquele que estiver sem pecado atire a primeira pedra ... Rahner, comentando o episódio de Jesus e a mulher adúltera (João 8, 1-11), diz que esta adúltera é a Igreja, sua esposa amada, a Santa Igreja.
3.4. A Igreja sob a força Espírito
A Igreja primitiva tinha consciência de que a sua origem e sua vida estavam ligadas ao Espírito. Este Espírito, de acordo com João Evangelista, foi derramado na Páscoa, sobre os discípulos (Jo 20, 19-23). Lucas, com um esquema de narrativa mais histórico e pedagógico, coloca o derramamento do Espírito na festa de Pentecostes (Atos 2: 1-13) sob os símbolos de um vento impetuoso e línguas de fogo, expressando o que será o Espírito para a Igreja: força futuro, vida, calor, amor, comunicação e comunhão. O Espírito presente na criação (Gn 1-2) e no Antigo Testamento (patriarcas, juízes, reis, profetas, sábios ...), agora floresce na Igreja. Os Atos dos Apóstolos são uma descrição de como o Espírito Santo faz a Igreja crescer em diferentes culturas, em meio a grandes dificuldades e perseguições. Todo o Novo Testamento pressupõe a ação dinâmica do Espírito na Igreja.
A partir da convicção de que Igreja é o Templo do Espírito (1 Coríntios, 3, 16) e, portanto, sem mancha nem ruga,santa e sem defeito (Ef 5, 27) e, portanto, quando a Igreja é introduzida no Credo dos Apóstolos, em conexão com o terceiro artigo de fé no Espírito, afirma-se que a Igreja é "santa". Também, como vimos, os Padres a Igreja proclamam o paradoxo da que a Igreja é, ao mesmo tempo, santa e pecadora ", meretrix casta." Embora, a partir do início da igreja, se sinta intimamente ligada a Jesus está convencida que não nasce, em Belém, ou Nazaré, mas em Jerusalém, na Páscoa e Pentecostes. A Igreja não está apenas ligado a Cristo, mas também ao Espírito. Como disse Ratzinger, uma eclesiologia que só liga a Igreja à Encarnação, é muito terrena e tem o perigo de mundanizar-se e secularizar-se.
Existem, portanto, dois princípios constitutivos da Igreja, o cristológico e o pneumático ou Espírito, que são como duas mãos com que o Pai nos molda à Sua imagem e semelhança, nas palavras de Irineu.
Esquecendo-se do Espírito
Ao longo dos séculos, a partir do segundo milênio, a mão do Espírito foi esquecido na Igreja, destacando-se apenas a mão do Filho, ficando o Pai como que mutilado. A Teologia se esqueceu, em grande parte, do Espírito Santo. No segundo milênio a doutrina do Espírito se mudou para a área da vida devocional da especulação (por exemplo, Veni Creator, hinos...) ou para a teologia da Trindade, inacessível à maioria do povo de Deus. Quanto à Igreja, parece que só a hierarquia possuía o Espírito Santo e o comunicava aos fiéis através da pregação e sacramentos. Daí resulta que o povo se torna um elemento meramente passivo na Igreja. No segundo milênio não se fala de carismas nem de participação do povo na liturgia nem na vida da Igreja (nomeação de bispos, a opinião pública no Igreja ...). Logicamente, os leigos foram totalmente postergados e marginalizados.
A Igreja Oriental acusou a Igreja Ocidental, latina, de "cristomonismo", isto é, confiar unicamente na ação de Cristo, esquecendo a dimensão do Espírito na Igreja. Um teólogo ortodoxo moderno, leigo, convidado para o Concílio Vaticano II, Paulo Evdokimov, diz que essa negligência do Espírito do Ocidente levou a que a Igreja, na sua instituição hierárquica, substituisse a liberdade profética, a divinização da humanidade, a dignidade dos leigos e do nascimento de uma nova criatura. Ou seja, o esquecimento do Espírito favoreceu uma visão da Igreja praticamente identificada com as suas estruturas visíveis e, em particular, com a hierarquia.
Queremos citar outro texto de um bispo oriental, o atual Patriarca Inácio IV, de Antioquia, entregue em 1968 no Conselho Mundial de Igrejas em Upsala: "Sem o Espírito Santo, Deus está distante, Cristo permanece no passado, o Evangelho é letra morta, a Igreja, uma simples organização, a autoridade é domínio, a missão uma propaganda, o culto uma evocação, e a ação cristã uma moral de escravos. Mas no Espírito, e em sinergia (colaboração) dissociada do cosmos é sustentada e geme no parto do Reino. O homem está lutando contra a carne, o Cristo ressuscitado é aqui, o Evangelho é o poder da vida, a Igreja é a comunhão da Trindade, a autoridade um serviço libertador, a missão é Pentecostes, a liturgia é memorial e antecipação, e a ação humana é divinizada".
O esquecimento da vida do Espírito reduz a vida do cristão em submissão e obediência da hierarquia, ritualismo e moralismo. É estranho que esta forma de entender e viver a fé na Igreja de hoje entrou em crise?
No entanto, o Espírito se move
Apesar do esquecimento do Espírito pela Teologia, Ele não deixou de agir no Igreja. Toda a história da Igreja está cheia desta misteriosa presença, muitas vezes anônima, mesmo desconcertante, do Espírito. Todos os movimentos proféticos que surgiram na Igreja são fruto do Espírito: o martírio dos primeiros séculos, o monaquismo, quando a Igreja se torna oficial, os movimentos leigos medievais em favor da pobreza, tanto da Reforma Protestante (Lutero, Calvino, T.Müntzer ...) e Católica (Inácio, Teresa, João da Cruz ...), os modernos movimentos sociais que reivindicaram uma sociedade mais igualitária, fraterna e livre, os movimentos teológicos que antecederam o Concílio Vaticano II (movimentos bíblicos, patrísticos e litúrgicos, ecumênico, pastoral, social ...), os sinais dos tempos dos nossos dias (feminismo, ecologia, pacifismo, o respeito pelas culturas e religiões, movimentos libertação ... etc.).
A santidade da Igreja, os mártires, seus missionários, seus místicos e místicas, artistas e pensadores, heroísmos anónimos que vivem tantas pessoas de fé no silêncio do dia, a fidelidade no casamento e na vida religiosa, a generosidade de muitas pessoas que trabalham para os pobres, a entrega das mães e sua preocupação para a transmissão da fé a seus filhos, o entusiasmo de muitos jovens de forma mais voluntária, a espiritualidade da várias igrejas cristãs, a vitalidade de todas as crenças ... são o resultado de Espírito. Mesmo a hierarquia da Igreja que silenciou o Espírito no seu ensino, muitas vezes é forçada a reconhecer isso, e não extingui-lo (1 Tessalonicenses 5, 19), mesmo se o Espírito fosse uma crítica à estrutura própria igreja.
Inocêncio III, no auge da teocracia papal do cristianismo medieval, acaba aprovando o carisma de Francisco de Assis, uma crítica implícita, mas clara, à Igreja de poder. Felizmente, o Vaticano voltou a reconhecer a presença de Espírito na Igreja como aquele que dá a vida, que guia para a realização, enriquecida com os presentes, rejuvenesce-a e leva à união com o Senhor (LG 4). Temos de relacionar com o Espírito tudo o que dissemos antes. O Espírito que nos leva à fé em Deus e Cristo, e que nos permite experimentar a partir do Mistério. O Espírito que conduz a Igreja a realizar o Reino de Deus, além de suas fronteiras. O Espírito é que garante a santidade da Igreja, além de sua prostituição e de seu pecado, fazendo que o pecado não tenha sucesso e as portas do inferno não prevaleçam sobre ela (Mt 16, 18), ou que a Igreja se converta numa sinagoga estéril.
Obviamente, a Igreja não tem posse exclusiva do Espírito mas o Espírito reside, de maneira peculiar, nela. Irineu disse que "onde a Igreja está, aí também está o Espírito. E onde está o Espírito de Deus, aí está a Igreja e toda graça." Hoje podemos dizer que a Igreja é o Sacramento do Espírito Santo. Em conclusão, a questão que o crente levanta hoje, que vive nesta forte crise eclesial é: Acreditamos que o Espírito não deu apenas à luz a Igreja no passado, mas continua a orientar e acompanhar a Igreja, hoje, em meio a este mundo moderno, secularizado, globalizado e pós-moderno? Se não cremos na presença do Espírito na Igreja concreta, de hoje, a nossa pertença à Igreja e a sensação de ser Igreja, não teria sentido.
3.5. A Igreja não se identifica simplesmente com a hierarquia
Esta afirmação decorre do que vimos, mas devemos fazê-lo explícito. É uma das mais profundas raízes do mal-estar na Igreja de hoje.
A Igreja é Apostólica
Para evitar mal-entendidos afirmemos, claramente, que a Igreja é "apostólica", construída sobre o fundamento dos apóstolos e profetas, com Cristo a pedra angular"(Ef 2, 20). A apostolicidade da Igreja que, com o tempo se estruturou no episcopado, sacerdócio e diaconato, conhecida como a hierarquia do Igreja, presidida pelo Papa, como bispo de Roma. No Novo Testamento a Cabeça da Igreja não é o Papa, mas Cristo (Col 1, 18). A própria designação do Papa como o Vigário de Cristo é mais medieval do que primitiva, já que para a Igreja dos Santos o Vigário de Cristo, ou seja, quem toma o seu lugar, é o Espírito Santo.Os pobres também são chamados de Vigários de Cristo. O Papa, na Igreja primitiva, é o Vigário de Pedro, que toma seu lugar na Igreja: mantê-la unida na fé e na comunhão.
Os pastores da Igreja não são meros delegados de base, mas governam a comunidade em nome de Cristo, mas também em nome de todo o povo (LG 10). Os pastores em sua doutrina, não ensinam a sua própria doutrina ou teologia, mas a de Cristo, preservada pela tradição da Igreja. A própria infalibilidade que o Papa goza em certas ocasiões, de acordo com o Vaticano I, apenas expressam a infalibilidade que o Senhor queria que a Igreja toda gozasse. (DS 3074). Por isso não se pode ser definir um novo dogma, se não parte da fé de toda a Igreja.
Inácio, em suas regras para se pensar em a Igreja fala de "ter a mente preparada e pronta para ser obediente ao Esposo verdadeiro de Cristo, nosso Senhor, que é nossa Santa Mãe, a Igreja hierárquica" (EE 353). Mas, para Inácio a Igreja não se identifica com a hierarquia; "hierárquica" é um adjetivo que descreve toda a Igreja e é equivalente a "apostólica". Nenhum católico pode duvidar que deve estar em comunhão pastoral com o Papa, bispo de Roma, e outros .Os bispos são sucessores dos apóstolos, o que implica, entre outras coisas, a docilidade ao seu ensino, embora, obviamente, em sã teologia se deva distinguir o magistério infalível do Papa e dos bispos, que não são infalíveis e contra os quais pode haver razões legítimas para discordar.
O risco de jerarcología
O que aconteceu, através dos séculos, especialmente desde o segundo milênio, é que a chamada hierarquia se sacralizou e absolutizou de tal forma que chegou a se identificar com a hierarquia da Igreja inteira. "É" a Igreja, a Igreja "é" o Papa. Desaparecem as noções de povo de Deus, comunidade, muito menos leigos. Há um abismo entre o clero e leigos, o sacramento da ordem dividindo a Igreja em dois lados bem definidos e opostos: aqueles com poder para ensinar, administrar os sacramentos e ordens, e aqueles que só têm a missão de obedecer, calar a boca e ser conduzido como um rebanho dócil. A Igreja é uma sociedade de desiguais (Pio X). Assim, como disse, no seu tempo, o futuro Cardinal Y. Congar, a eclesiologia se tornou uma "jerarcología".
Conseqüências trágicas
Como foi observado anteriormente, isto é consequência do esquecimento da dimensão do Espírito como o princípio da Igreja de Cristo, e resultou em uma instituição unilateral e empobrecida de Igreja visível, de hierarquia, estrutura,. As consequências deste reducionismo foram muito graves ao longo da história da Igreja, até hoje. Na maneira usual de falar, não só dos meios de comunicação social, mas dos próprios católicos, a palavra "Igreja" é equivalente à hierarquia, o papa e os bispos. Então dizemos que a Igreja tem dito, a Igreja proibiu, a Igreja condenou, a Igreja tem criticado o governo ... para se referir às ações do papa ou um bispo ou de uma conferência episcopal. Muitos escritores, teólogos e historiadores da igreja cairam na mesma falácia.
Não negamos que a Igreja possa ter uma representação eclesial e, em certa forma, possa simbolizar toda a Igreja. Mas esta linguagem é ambígua e leva à confusão, pois não podemos aceitar que a hierarquia seja identificada com toda a Igreja, do mesmo jeito como a igreja é um símbolo de Reino, mas a Igreja não pode ser identificada com o Reino de Deus. Daí entende-se que os desafios, as críticas e reservas dos fiéis contra a hierarquia, se tornem ipso facto dificuldades contra "a" Igreja de Cristo. Mas, felizmente, a Igreja é mais ampla do que a hierarquia, ela é toda a comunidade dos batizados, o povo de Deus, como se expressa o Concílio Vaticano II, na Lumen Gentium, antepondo o capítulo do Povo de Deus (LG II) antes da hierarquia (LG III), dos leigos (LG IV) e da vida religiosa (LG VI).
Alguns fatos da história
G. Bernanos, em sua Carta aos Britânicos, tem uma expressão feliz de grande profundidade eclesiológica: "Não são os mesmos homens que Deus escolheu para manter a sua palavra e que vão fazê-lo." O que se manifestou já no Primeiro Testamento, continua a verificar-se na história da Igreja. É a parábola Bom Samaritano, onde o padre e o levita passam ao largo junto ao ferido do caminho para naõ contagiar-se ou chegar atrasado para o templo (Lc 10, 29-37). A história diz-nos que muitas vezes, não só no passado, mas também atualmente, a hierarquia se tornou um sinal de escândalo para o Igreja. E a Igreja avançou graças à não-hierarquia. O Cardeal Henry Newman, um grande conhecedor da história da Igreja, alegou ter ficado muito impressionado ao descobrir que, por volta do século IV, muitos bispos cairam na heresia do Arianismo, enquanto as pessoas comuns continuavam na fé ortodoxa. Além disso, a história das missões reconhece que, durante séculos, os cristãos do Japão mantiveram a sua fé sem sacerdotes entre eles. Já alguns padres da Igreja, como Atanásio e Hilário, alegaram que "os ouvidos dos fiéis são mais santos do que as bocas dos sacerdotes", ou seja, que os fiéis interpretam bem, mesmo sem o clero.
Não admira que o Vaticano afirme o valor da fé das pessoas, o sentido da fé (sensus fidelium) e continue a dizer que esta fé é infalível, quando em comunhão com a tradição da Igreja (LG 12). Os fiéis desfrutam dos dons do Espírito (cf. 1 Cor 12, 11, 12, 7) para o serviço de toda a Igreja (LG 12). O Vaticano II também diz que os leigos têm o direito e até o dever de expressar suas opiniões sobre o que faz o bem da Igreja, citando um texto de Pio XII afirmando que nas batalhas decisivas, não raramente iniciativas mais felizes, nascem na frente (LG 37, nota 7).
A recepção
Mais ainda: a teologia moderna (Congar, Grillmeier ..) redescobriu a importância que tinha para a Igreja dos primeiros séculos, os fiéis cristãos assimilarem o que a hierarquia propunha. Este "recebimento" não era apenas obediência, mas um aceno de coração, como o "Amém" da liturgia. Quando se realizou o Concílio de Éfeso em 431, os fiéis aguardavam os bispos nas portas da basílica. E quando eles foram informados de que tinham definido que Maria era a Mãe de Deus, o povo irrompeu em aplausos, isto é foi "recebido" com alegria e satisfação. Muito diferente é a situação quando as pessoas não aceitam uma doutrina mas a contestam, o que não significa necessariamente falta de obediência, mas que aí está algo inassimilável, incompleto, imaturo, inadequado ou parcial. Considere-se o que aconteceu quando Paulo VI publicou a encíclica Humanae Vitae sobre o controle de natalidade...
A história confirma que, por vezes, o pólo profético da Igreja tem sido os leigos e religiosos que salvaram a Igreja de crise: o monaquismo medieval, o movimento mendicante, a reforma da era moderna, os movimentos católicos sociais, os movimentos em torno da teologia do Vaticano II, aqueles que agora defendem que "outra Igreja é possível"... Não é por acaso que o Vaticano admitiu tudo isso, depois de ter reconhecido, como vimos, que toda a Igreja está sob a força e a inspiração do Espírito Santo (LG 4). Sem o Espírito Santo, a Igreja está reduzida a uma mera organização, uma simples instituição. A doutrina e a prática da "recepção" implica que o corpo da igreja inteira é animada pelo Espírito, é ativa e participativa, não apenas passiva. É o Espírito que faz a Igreja, em comunhão com a Trindade e com o dinamismo profético a serviço do Reino. Por que não reconhecer a santidade de fé, muitas vezes escondida e anônima dos pobres, as mulheres idosas que vão à missa, por vezes, apenas para rezar o terço, os sacerdotes que têm fé no meio de dificuldades econômicas, os mártires inocentes do passado e do presente, de famílias verdadeiramente cristãs, e assim por diante? As canonizações oficiais de Roma não cobrem nem reconhecem toda a santidade escondida da Igreja do Povo de Deus.
3.6. A Igreja é a Igreja de Jesus de Nazaré, histórico e dos pobres
Tudo que foi dito até agora seria incompleto se não se acrescentar que a Igreja está intimamente ligada ao Senhor Jesus, o Cristo ressuscitado, Igreja de Cristo, e edificada sobre ele (Ef 2, 10, Mt 21, 33-46). Isto é melhor compreendido se mostrarmos que a história da salvação é atravessada pela lei da encarnação. O Espírito não se opõe a Cristo, mas o Espírito é o que torna possível a encarnação de Jesus e orienta toda a sua vida. É o Espírito que dá luz à Igreja, que continua a obra de Jesus na história. Isto é, Deus não deixa a criação abandonada à sua sorte, mas intervém na história, em primeiro lugar nas pessoas, preparando Israel e, em seguida, a encarnação de Jesus (LG 9). Mas no momento do nascimento da Igreja, na Páscoa-Pentecostes, foi identificado o risco da encarnação de Jesus glorioso e ressuscitado que esquece a encarnação e crê que chegou o Reino de Deus. Na verdade, no Novo Testamento, há alguns textos (em Atos, Efésios e Colossenses) que poderiam levar a algum triunfalismo eclesiástico.
Os perigos da Igreja da Cristandade
Enquanto a Igreja era perseguida pelo Império Romano e os cristãos mártires morriam nas arenas do circo Romano ou na fogueira, não havia o perigo do triunfalismo. Mas, com o reconhecimento da Igreja como a religião oficial do império, em tempos de Teodósio (380), quando a igreja deixa de ser subterrânea e das catacumbas, o perigo voltou a assombrar. Eusébio de Cesaréia, para descrever a banquete do Imperador Constantino oferecido aos bispos reunidos na Concílio de Nicéia, em 325, crê ver o Reino de Cristo. Outros observadores, mais atentos do que Eusébio de Cesaréia, logo se dão conta da ambiguidade da situação nascida da Igreja de Constantino e os riscos desta união íntima entre a Igreja e o Império. Assim, Santo Hilário diz, sobre o imperador cristão Constâncio, que "apunhala-nos de trás, mas acaricia a barriga (...) Chega a ser um perseguidor, sem mártires."
Uma conseqüência dessa situação ambígua do cristianismo é que a hierarquia da Igreja, identificada com o Reino de Deus, se torna poderosa. Uma vez com o poder, não só económico, mas também político, a hierarquia condena os hereges à fogueira, promove cruzadas, destrói culturas e religiões, dizendo-as obras do diabo, aliada com os grandes deste mundo para defendê-lo, rejeita príncipes excomungados e confunde honra e glória de Deus com a "sua" honra e glória.
Voltar ao evangelho
O risco é esquecer o mistério encarnação de Jesus, ou a kenosis de que São Paulo fala (Fl 2, 1-11) e da vida do Jesus histórico transmitido pelos Evangelhos: nascimento pobre em Belém, a sua vida por trinta anos de humilde carpinteiro, sua pregação contra a riqueza e o poder, sua opção e preocupação pelos marginalizados para aliviar o sofrimento do povo (óchlos), que se compadecia profundamente, sua oposição aos poderosos e para os que usavam a religião para oprimir o povo, seu conflito permanente com as autoridades religiosas de Israel, sua morte, como um blasfemador e salteador nu em uma cruz, entre dois rebeldes. A Igreja continuamente tende a esquecer que é a Igreja de Jesus de Nazaré pobre, a Igreja do Crucificado, que a sua mensagem não é a sabedoria deste mundo, mas da cruz (1 Cor 1, 17-31). A ressurreição de Jesus não nos permite desvinculá-lo da sua cruz: suas feridas permanecem frescas em seu corpo glorioso (Jo 20, 25-29).
Entende-se que todos os movimentos proféticos que têm surgido na Igreja ao longo da história tenham pedido um retorno à Igreja primitiva, fiéis à Palavra, aos pobres, à comunidade, evangélica humilde, acolhedora, respeitosa, próxima do povo pobre, finalmente, voltar à Igreja do Crucificado. Mas esta proposta profética de João XXII, pouco antes do Vaticano II, que a Igreja fosse, acima de tudo a Igreja dos pobres, embora algumas pessoas possam ter achado revolucionário ou ter desconfiado, no fundo era uma atitude altamente evangélica ligada à genuína tradição da Igreja. Deve-se admitir que essa idéia de João XXIII não chegou a ser recolhida em textos conciliares, além de algumas alusões ocasionais (LG 8; GS 1). O bispos e teólogos mais influentes do mundo europeu e americano, estavam mais preocupados em como dialogar com o mundo desenvolvido e a modernidade secular, que do Terceiro Mundo pobre.
A interpelação das Igrejas do Terceiro Mundo
Será que as Igrejas do Terceiro Mundo e, muito especificamente, a Igreja latino-americana, vão levar adiante a utopia do Papa João, de uma igreja, especialmente dos pobres? As Igrejas do primeiro mundo estão fechadas em si mesmas, ou acreditam que os únicos problemas da Igreja estejam ligados ao Iluminismo, muitas vezes ligado à burguesia. A maioria da humanidade e da Igreja universal vive nos países pobres do hemisfério sul, onde a vida diária não está garantida, mas ameaçada. Devemos lutar pela vida, pelo pão de cada dia: a falta de habitação, cuidados com a saúde, faltam escolas, a expectativa de vida é curta, falta de trabalho, os governos são muitas vezes ditatoriais e corruptos, sob a dependência econômica dos países ricos e suas empresas multinacionais; as culturas indígenas são marginalizadas, as mulheres são discriminadas e são os que carregam o peso da pobreza; crianças na rua e gangues de jovens que buscam sobreviver, às vezes violentamente; a natureza é explorada em favor de empresas estrangeiras, há lutas tribais e violência da guerrilha...
No entanto, esses países têm grandes valores humanos, culturais e religiosos e, especificamente, na América América, a fé cristã e a Igreja Católica tem vivido um tempo de erupção profunda depois do Concílio Vaticano II. Sem cair no triunfalismo que afasta a Igreja de Jesus Nazaré, podemos testemunhar às outras igrejas o que o Senhor fez na Igreja latino-americana. Tornou-se a Igreja de Jesus pobre e histórico e de Nazaré, que envolve a recuperação de algumas categorias: a centralidade do Reino de Deus na pregação de Jesus, sua escolha daqueles que têm a vida ameaçada, a sua confrontação com o sistema político (Pax Romana) e religioso (Teocracia judaica), que o condenarão à morte. A Ressurreição de Jesus significa que o Pai dá razão às opções de Jesus, colocando-se ao lado das vítimas. Também se recuperou a importância do seguimento de Jesus, como uma categoria central para o Cristianismo.
Na prática da Igreja, as conferências do Episcopado Latino-Americano Medellín (1968) e Puebla (1979) ouviram o grito do povo oprimido e fazem uma opção profética pelos pobres. Entre os bispos têm surgido figuras extraordinárias, verdadeiros pais da Igreja na América Latina e do Caribe que, mesmo não sendo teólogos profissionais, colocaram-se ao lado do povo e tem feito realmente opções pastorais evangélicas em defesa das pessoas marginalizadas e excluídas, denunciando a injustiça e a morte, optando por uma sociedade nova, pacífica e justa. Esses santos Padres da Igreja na América Latina, pais da verdadeira fé, foram acusados de marxistas e, às vezes, incompreendidos por seus próprios irmãos no episcopado e por Roma, mas foram fiéis ao evangelho e a seu povo até o fim, mesmo dando sua vida por suas ovelhas como Angelelli, Romero e Girardi. Juntamente com os bispos e em comunhão com eles, outros setores da Igreja da América Latina já começaram uma nova maneira de ser cristão e de ser Igreja. Nascem, as comunidades eclesiais de base dos pobres, muitos leigos se comprometem na transformação da sociedade pela sua presença no social e no político e as mulheres assumem todas as responsabilidades no ministério da Igreja (agentes palavra, catequistas ..), muitos grupos de vida religiosa, especialmente mulheres, estão inseridos entre os mais pobres, nas favelas das cidades, entre índios e afro-americanos, mineiros etc. muitos sacerdotes se aproximam do povo e partilham as suas vidas. Entre todos eles há mártires da justiça do Reino. A Teologia da Libertação latino-americana acompanha esses processos, reflete sobre eles, retorna a Bíblia ao povo e também sofre perseguição e até mesmo o martírio. Na verdade, desde os anos 90, as coisas mudaram socialmente e eclesiasticamente. Porém o vivido nos anos 70-90 é um sinal de esperança para toda a Igreja de que é possível retornar às origens da Igreja Evangélica, o Jesus de Nazaré, a Igreja dos pobres. O Espírito continua a estar presente e agir na Igreja.
3.7. Conclusão
Em conclusão desta recordação de algumas verdades esquecidas, podemos dizer que a Igreja, certamente menor que Deus e o reino, humana e divina, santa e pecadora, que não se identifica com a hierarquia, está sob o poder do Espírito e é a Igreja de Jesus de Nazaré e dos pobres. É um mistério que faz parte do projeto da Trindade para o mundo (LG I), um sacramento de salvação universal (LG 1, 9, 48).
4. Atitudes cristãs ante a Igreja de hoje
Esta iluminação teológica tem que nos ajudar a tomar atitudes práticas nesta situação de inverno eclesial de hoje. Não vamos dar novas regras para sentir na Igreja, mas podemos oferecer algumas pistas que orientem nossa realidade e compromisso. O Espírito do Senhor ajudar-nos-á a discernir em cada contexto como o podemos concretizar, buscando antes de tudo, o Reino de Deus, a esperar na ressurreição final. Por meio dela (a Igreja) conhecemos a Jesus, sua vida, seus ensinamentos, sua cruz e ressurreição. Ela nos ensinou a invocar Maria, a venerar os santos, imitar a sua virtudes. Ela dá sentido às nossas vidas, ao trabalho, ao sofrimento e à própria morte. Se temos uma visão não-mágica ou fatalista do mundo, mas esperançadora, e se nós trabalhamos para melhorá-lo e torná-lo mais humano e justo, é devido, em grande parte, à Igreja. O amor, a solidariedade, o senso de justiça e liberdade, a busca da paz, a reconciliação e o perdão, a valorização da razão e da ciência e das culturas alimentam-se no ensino evangélico que a Igreja nos transmitiu. A maior parte dos direitos humanos que professamos (o direito à vida digna, à liberdade, o respeito pela minorias, o respeito por todas as pessoas ...) têm sua raiz última na Igreja, embora no mundo secularizado de hoje, muitos não o reconheçam.
4.1. Gratidão e amor
Seria injusto ficarmos só com os aspectos negativos da Igreja do passado e do presente, sem reconhecer tudo o que temos recebido dela, mesmo em meio a todas as suas contradições e incoerências. Graças à Igreja recebemos a fé cristã, o evangelho, os sacramentos, desde o batismo à Eucaristia, e dela também esperamos receber a unção dos enfermos. A Igreja nos ensinou a orar, a perdoar e a pedir perdão, a amar a todos, especialmente aqueles que mais precisam, a ter confiança.
Um romance curto, do nobel russo, Alexander Solzhenitsyn, intitulado A Casa de Matriona, pode servir-nos como um símbolo narrativo do que estamos dizendo. Em uma pequena aldeia russa vivia Matriona, uma mulher velha, pobre, que tinha apenas dois bodes. Matriona, contudo, ajudava aos mais pobres do povo, ensinava o catecismo às crianças, aconselhava casamentos em crise, quando havia um banquete de casamento ajudava a preparar o casamento, em caso de morte sempre estava disposta a trabalhar com a família enlutada, sempre disponível para servir a todos.
Um dia morre Matryona e então o povo se dá conta de que Matriona era realmente a alma da comunidade. Solzhenitsyn acaba aqui a sua pequena história. Mas podemos vê-la como uma parábola da Igreja. O que seria da humanidade, de nós, sem a Igreja?
4.2. Fidelidade crítica
Obviamente entender-se-ia mal tudo o que foi dito se se tirasse a conclusão de que nossa missão na Igreja se reduz a obedecer, a calar e louvar o que está acontecendo na Igreja. A obediência e a fidelidade aos pastores e a seu magistério doutrinal é essencial para o cristão. Sempre se insistiu nisso. Mas essa fidelidade deve ser madura, crítica, mesmo controversa. Corresponde à autoridade, também a eclesial, manter a tradição, o equilíbrio de forças, a coesão, a harmonia no grupo, não precisamente abrir novos caminos. A autoridade não quer mudanças; prefere manter a situação atual. Por isso dificilmente os dinamismos das mudanças nascem da autoridade. Mais ainda: a autoridade freia as mudanças, condena e culpabiliza os dissidentes, acusa-os de desobedientes. Inclusive apresenta como intocáveis questões que são realmente discutíveis. Deveria estar mais presente a afirmação do Vaticano II de que, em muitas questões, inclusive graves, não esperem, os fiéis, respostas de seus pastores (GS 43).
Cristãos incômodos
A história da Igreja ensina que muitos avanços têm sido feitos a partir destas dissidências, transgressões e até mesmo desobediências. Muitos cristãos incômodos lograram avanços nos diferentes campos da teologia e da práxis cristã. A forma personalizada de celebrar o sacramento da penitência, chamou logo a confissão individual, introduzida pelos monges irlandeses, mas foi, no começo, completamente rejeitada pela autoridade eclesiástica que queria manter a rigidez da penitência primitiva canônica, até que ela, tempos depois, foi proposta como modelo de celebração da penitência obrigatória para toda a Igreja. Os exemplos poderiam ser multiplicados.
A história também nos ensina que muitas doutrinas ensinadas pelo magistério ordinário foram logo retratadas. Consideremos, por exemplo, algumas declarações da Comissão Bíblica, que ensinava que o Pentateuco tinha por autor a Moisés, ou algumas declarações do magistério que condenava a vacina como antinatural... Tudo isso tem sido amplamente estudado. Disto se segue que a fidelidade ao magistério pode ou deve mesmo ser crítica. Por isso o Cardeal Ratzinger, na apresentação da Instrução sobre a vocação eclesial do teólogo, não hesitou em afirmar que "a Teologia não é pura e simplesmente uma função auxiliar do magistério; não deve limitar-se a apoiar argumentos que venham do magistério”, pois neste caso o magistério e a teologia se aproximariam de uma ideologia que apenas quer manter o poder. Estes cristãos incômodos não são dissidentes "da" Igreja já que mantêm sua fidelidade e comunhão eclesial, mas "na" Igreja, na qual, em muitas questões, se pode dar liberdade. Essa ação faz parte do que na teologia da Igreja se chama "recepção", que pode manifestar-se também como rejeição e dissidência.
Este sentido crítico costuma produzir muitas tensões e sofrimentos na Igreja, como o tem vivido muitos santos e muitas pessoas proféticas que abriram caminhos na Igreja. Assim, a autoridade do magistério que mantém a tradição da Igreja e a fidelidade crítica de alguns setores proféticos não estão em contradição, mas são duas funções distintas e complementares na Igreja. O importante é manter o diálogo e a comunhão. O grande eclesiólogo Y. Congar estudou muito a questão das reformas na Igreja e estabeleceu uma série de princípios para que estas reformas sejam verdadeiras: bom conhecimento da realidade, não deixar-se levar por slogans, sentir-se pecador, sentir-se parte da Igreja, não criticar de fora ou a partir de acima, manter a liberdade e a fidelidade, como Paulo diante de Pedro (Gl 2, 11s), como São Bernardo frente ao Papa Eugênio III (que o acusava de ser mais o sucessor de Constantino do que de Pedro), fazê-lo dentro de um clima de diálogo com os responsáveis, acreditar que o Espírito está na Igreja e não a abandona, produz santos e continua a renová-la continuamente. Tudo isso nos leva a concluir que nossa fidelidade à Igreja deve ser sempre madura, não infantil, e muitas vezes, crítica e até polêmica. O Espírito faz avançar, assim a Igreja. Mas isso supõe, muitas vezes, aceitar a cruz.
4.3. Esperando contra toda a esperança
A vida do cristão na Igreja de hoje não é fácil. A muitos cristãos lhes doi ser Igreja. Nesta situação se deve "esperar contra toda a esperança ", como Abraão (Rm 4, 18), como o próprio Jesus que morre abandonado na cruz, sem ver os frutos de sua missão na terra. Hoje a pertença à Igreja, o sentir-se Igreja passa pela cruz.
Quando Inácio de Loyola escreveu suas regras para sentir na Igreja, não podia imaginar o custoso que isso iria ser nesta fidelidade eclesial. Paulo III não foi, em sua vida privada, nenhum modelo de perfeição cristã e, contudo, Inácio põe-se a serviço dele e de seus sucessores, com um quarto voto acerca das missões que o Papa quisesse confiar. Inacio também teve dificuldades com o Cardeal Caraffa e quando este foi nomeado Papa, com o nome de Paulo IV, Inacio estremeceu em seus ossos e foi rezar na capela, da qual veio calmo. Os últimos anos da vida de Inácio foram uma autêntica noite escura eclesial, pois devia obedecer a um homem que nunca havia demonstrado afeto nem a Inácio nem à Companhia, que não ajudou em nada na manutenção do Colégio Romano, que estava em grande necessidade, e que, após a morte de Inácio, tentou introduzir o coro na Companhia e não hesitou em descrever Inácio como um "tirano". Pois bem, a última vontade de Inacio, quando estava mortalmente doente foi pedir a seu secretário Polanco para ir para o Vaticano pedir a bênção do Papa Paulo IV, um homem que poderia desfazer a Companhia. Inacio morre sob a bênção de Paulo IV.
Teresa de Jesus, que teve grande conflitos com a hierarquia de seu tempo, nunca renunciou à sua participação na Igreja e, no final de sua vida, pode exclamar: "Finalmente, morro filha da Igreja".
No século XX assistimos testemunhos de grandes homens, muitos deles teólogos, que sofreram muito na Igreja e pela Igreja e permaneceram fiéis até o fim de suas vidas. Henri de Lubac, demitido de seu cargo de professor de teologia em Lyon-Fourvière, no tempo de Pio XII, após a encíclica Humani Generis (1950), escreveu nesta situação de desconfiança e marginalização ecleisal seu livro Meditação sobre a Igreja, que é um testemunho de sua fé e de seu amor à Igreja. Logo foi teólogo do Concílio Vaticano II e, mais tarde, nomeado cardeal por João Paulo II.
Outro grande teólogo, o dominicano Yves Congar, também demitido de seu cargo de professor em Saulchoir-Paris, nas mesmas circunstâncias que de Lubac, deixou em seu Diário o testemunho arrepiante do seu sofrimento ao ser condenado pelo Santo Ofício e, até mesmo, ser banido da França: "Fui praticamente destruído. Me tiraram tudo aquilo no qual cria e ao qual me entreguei: ecumenismo (desde 1939 não tenho feito nada ou quase nada), o ensino, as conferências, as atividades como sacerdote, a colaboração no testemunho cristão, a participação nas principais conferências (intelectuais católicos, etc). Eles não tocaram meu corpo; em princípio, não tocaram minha alma; não me pediram nada. Mas a pessoa de um homem não se limita a sua pele e à sua alma. Especialmente quando este homem é um apóstolo doutrinal, "é” sua atividade, "é" seus amigos, seus relacionamentos", é" sua irradiação normal. Tudo isso me foi tirado; pisoteou-se tudo isso, e assim me feriram profundamente. Reduziram-me a nada, e, por conseguinte, me destruiram. Quando, em certos momentos, revejo o que tinha valorizado, o que tinha começado a perceber, sou tomado por uma dor suprema." Congar, não se deixou levar pelo desânimo ou pela amargura, continua trabalhando a partir do exílio e, uma vez reabilitado pelo Papa João XXIII e nomeado membro conciliar, especialista, será um dos grandes teólogos do Vaticano II e, no final de sua vida, aceita ser nomeado cardeal pelo Papa João Paulo II.
K.Rahner, apesar de ele não ter que renunciar a sua cátedra de Innsbruck, teve grandes dificuldades com Roma, que lhe impôs uma censura em todos os seus escritos, foi um grande homem de Igreja. Basta um testemunho dele: "A Igreja que servimos, a qual temos dedicado nossas vidas, a qual nos consumimos é a Igreja peregrina, a Igreja de pecadores, a Igreja que para manter-se na verdade, no amor e na graça de Deus, precisa de um milagre quotidiano e especial desta mesma graça. Somente assim podemos amá-la de forma adequada”.
Outro grande teólogo, o moralista redentorista Bernhard Haring, que sofreu dificuldades incalculáveis com Roma a ponto de dizer que preferia os interrogatórios dos agentes de Hitler aos da Cúria Romana, professa, no fim de sua vida, um grande amor para a Igreja: "Eu amo a Igreja, porque Cristo a ama até em seus elementos mais externos. Eu a amo mesmo quando eu descubro com dor, atitudes e estruturas que não estão em harmonia com o evangelho. Eu a amo como é, porque Cristo também me ama com todas as minhas imperfeições, com todas as minhas sombras, e me dá o impulso constante para chegar a ser o que corresponde a seu plano salvador. (...) Caminhemos nessa direção e prnsemos, agradecidos, em tudo de bom que cresceu e continua brotando da Igreja ".
Finalmente, Pedro Arrupe, um dos homens de Igreja mais proféticos dos anos do Concílio Vaticano II e mais devotos do Papa, no final de sua vida sofre uma noite escura e profunda. Isso já começou no tempo de Paulo VI, mas piorou com João Paulo II. Arrupe queria desistir de seu generalato da Companhia de Jesus e convocar uma Congregação Geral para o ano de 1980, mas João Paulo II não permitiu. Em agosto de 1981, no seu regresso das Filipinas, sofreu um acidente vascular cerebral que lhe afeta a fala e nomeia Vigário Geral o Pe. V. O'Keef. Em outubro do mesmo ano, ele recebeu uma carta do Papa em que ele anunciou que João Paulo II, em vez de Vigário Geral nomeado pelo Arrupe, nomeou, como Delegado Pontifício para a Companhia, o P. Paolo Dezza e que, por enquanto, ficava adiado qualquer anúncio da Congregação Geral. Arrupe, incapaz de falar, recebe a notícia chorando. No fundo se desqualificava o modo de governo de Arrupe e se intervinha na Companhia. Após dois anos de provação, por fim, em 1983, a Congregação Geral se pode reunir, o Padre Arrupe renunciou e é nomeado o seu sucessor, o P. P. H.Kolvenbach. Pedro Arrupe, em 1991, termina seus dias na enfermaria de Roma, após dez anos de silêncio e oração, sempre sorrindo, oferecendo suas vidas para a Igreja. Temos de esperar contra toda esperança. Esperamos que o deserto floresça e que depois do inverno, renasça a primavera (Cant.2,11-13).
O conhecido pensador e filósofo francês Roger Garaudy conta num de seus livros este facto histórico.. Ele pertencia durante anos, ao comitê do Partido Comunista Francês, de tendência filo-russa. Na primavera de 1968, quando
tanques russos esmagaram as tentativas de libertação do povo tcheco, na "Primavera de Praga", Garaudy criticou publicamente as ações do Partido Comunista Russo. Em consequência, foi publicamente expulso do Partido Comunista Francês, notícia que a mídia francesa logo espalhou e transmitiu ao vivo. Era meio-dia e Garaudy pensou onde iria comer. Não lhe agradava a idéia de ir comer sozinho, num dos muitos restaurantes parisienses. Nem lhe parecia certo retornar, como geralmente, para a sua casa, com sua segunda mulher, com quem viveu por algum tempo. Ocorreu-lhe, então, ir para a casa de sua primeira mulher, da qual se tinha separado há anos e morava sozinha. Ao chamar a casa da sua primeira esposa, e ao passar pela sala de jantar, notou com surpresa que a mesa já estva posta com dois pratos. Ele pediu a sua primeira mulher se ela esperava alguém para comer, pois não queria estorvar. Ela disse: "Eu esperei por você, porque eu tenho ouvido esta manhã, que te haviam expulsado do Partido Comunista Francês e eu pensei que, neste momento, o único lugar que você poderia comer era vir para a minha casa. Por isso eu coloquei dois pratos na mesa..."
Até aqui, a história de Garaudy. Mas não podia esta primeira mulher, intuitiva, hospitaleira, fiel, abrir a porta e pôr um prato na mesa ... simbolizar a Igreja de Jesus, amigável e leal, sempre disposto a compartilhar o que é e o que você tem com a gente...?
Texto: Víctor Codina
Tradução: Hilário Dick
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