O ano de 1968 começou em Berkeley e em Paris, o 1977 na Itália e na Alemanha, talvez algum dia diremos que um novo movimento floresceu no outono de 2010 às margens do rio Tâmisa. “Tenho certeza, é o início de alguma coisa importante”, diz o aluno com os livros debaixo do braço, ignorando que repete o slogan de seus pais, a frase que, das barricadas do maio francês, há mais de quarenta anos atrás, incendiou o mundo. “Sim, a manifestação de ontem em Londres é apenas o início”, insiste Carl, 23 anos, matriculado em sociologia, de fronte ao portão da Escola de Economia de Londres, a mais prestigiosa universidade de ciência política do planeta.
A reportagem é de Enrico Franceschini, publicada no jornal La Repubblica, 12-11-2010. A tradução é de Anete Amorim Pezzini.
“Continuaremos a lutar, não somente para impedir o aumento das taxas universitárias, mas para opormo-nos a uma política que, na Grã-Bretanha e em todo o Ocidente, está fazendo os mais indefesos pagarem as culpas dos mais fortes, os mais pobres pagarem os excessos dos banqueiros que provocaram a recessão global”. Em volta dele, os seus companheiros assentem, cada um tem algo a dizer: sobre os confrontos com a polícia, os vidros quebrados, o outono quente e o inverno de descontentamento. “Já sucedeu que as revoluções sociais partiram dos estudantes”, concordam. Talvez sonhem. Mas têm a idade certa para sonhar.
Chuva e rajadas de vento: bastaria o tempo para apagar o fogo que quarta-feira à noite brilhava em volta da Millbank Tower, o arranha-céu em que está a sede do Partido Conservador, ocupado e tomado de assalto pela maior manifestação estudantil ocorrida na capital em duas décadas. O primeiro ministro, David Cameron, condena “o intolerável” acontecimento; o prefeito Boris Johnson, também ele do Tory, atribui a responsabilidade a “uma minoria de desordeiros”. Mas basta subir um pouco o Tâmisa, deixando para trás as barricadas da polícia e o parlamento de Westminster, para ouvir opiniões bastante diversas entre os “desordeiros” de volta do ataque.
Fundada há mais de um século pela Sociedade Fabian, a Escola de Economia de Londres (LSE) não é o foco do movimento estudantil, pelo menos não é o único: mas é a universidade onde a paixão política é mais forte. A despeito do nome, não se estuda somente economia, mas, sobretudo, as ciências políticas e sociais. Passaram tantos pelos seus bancos: de John Kennedy a Romano Prodi, até Ed Miliband, novo líder do Partido Trabalhista britânico. Os seus reitores incluem o filósofo Ralph Dahrendorf e o sociólogo Anthony Giddens. Há uma incrível relação docentes-estudantes de 1 para 9: mais de mil professores, tutores e pesquisadores por nove mil alunos.
É a universidade da Terra em que é mais difícil de entrar: 15 pedidos de inscrição para cada vaga. E a mais étnica: diz-se que há estudantes de tantas nacionalidades quanto são os países membros da ONU. Ei-las aqui: uma banquinha de alunos israelenses faz propaganda para a paz no Oriente Médio, uma dos movimentos pela democratização de Pequim, outra de islâmicos para ajuda ao Paquistão inundado. Há até um minicortejo de jovens que agitam cartazes com os escritos “Libertem as taxas”, isto é, liberem as taxas universitárias: “Nós queremos que venham aumentadas, não diminuídas”, dizem, “somos pelo mercado livre, até no campo acadêmico”.
Pai inglês e mãe alemã, o aluno que me serve de guia torce o nariz. “Protestamos também por isso, para impedir que a nossa universidade torne-se uma outra coisa”, explica Carl. “Uma vez os que desejavam ganhar dinheiro iam para Oxford, os que acreditavam nas causas sociais vinham para cá. Não mais. No ano passado, mil alunos da LSE candidataram-se a uma vaga de trabalho na Goldmans Sachs. Pelo menos metade dos inscritos desejava tornarem-se banqueiros. Se as taxas universitárias triplicam, para eles não é um problema”. O primeiro a tripicá-la foi o trabalhista Blair, elevando as taxas de inscrição de mil para três mil libras esterlinas por ano. Agora, a reforma apresentada pelo governo conservador de Cameron propõe fazê-las ir até nove mil libras esterlinas (10.600 euros) por ano. Significa de 40 a 50 mil euros por uma láurea: o preço mais alto da Europa por uma educação universitária. Esse dinheiro pode ser obtido por empréstimo e ser restituído gradualmente com base em quão alta é a renda que se ganha depois da formatura.
Um pacto aceitável, segundo os Tories: uma universidade de elite — e as universidades britânicas são as melhores de todas, depois das dos Estados Unidos da América — custa caro, mas garante grandes ganhos aos seus egressos. “Raciocínio que apresenta dois problemas”, objetam Carl e seus companheiros. “Se não quero um trabalho que me dê ganhos abundantes, se prefiro um que me dá satisfação, mas não me torna rico, como restituo todo aquele dinheiro? E, em segundo lugar, um sistema desse tipo introduz a lógica de mercado na instrução superior, induz implicitamente à escolha de um curso de estudo para profissões altamente bem pagas. Mesmo em um lugar como a Escola de Economia de Londres, a reforma de Cameron aumentará o número dos aspirantes à Goldman Sachs, e reduzirá aqueles, como eu, atraídos pelo comprometimento social”.
Tento relatar o seu dia típico, mas se resume em duas linhas: "Eu venho à faculdade às dez da manhã e saio à meia-noite, com exceção das pausas para comer aqui por perto." Bem, os manifestantes de 68 e 77 não tinham exatamente a mesma vida. "Eu não sou um CDF", Carl sorri da piada. "Nós fazemos quase tudo assim. Não faz sentido inscrever-se na LSE, se você quer perder tempo. Para mim, ir para a aula ou estudar na biblioteca é um prazer." Como prolongar o prazer, porém, se falta o apoio financeiro? A Grã-Bretanha, como grande parte do Oeste, saiu da recessão com uma dívida terrível. Todos os especialistas concordam que não há outra escolha senão cortar os gastos públicos: muito ou pouco, agora ou mais tarde, de qualquer modo terá de cortá-los. Quem paga, então, para ter uma elite? "Cameron não se limita a aumentar as taxas universitárias, está também zerando o financiamento público à educação. Seu verdadeiro projeto é privatizar as universidades, como na América. Isso é o que queremos para a Europa de amanhã? Nós, do movimento estudantil, pensamos que os serviços de utilidade pública, em particular a educação e a saúde, devem ser fornecidos pelo Estado. E nós pensamos que é injusto fazer os mais vulneráveis pagarem esta crise, quando foi causada pelos erros e excessos das categorias mais fortes, como os banqueiros. Que eles paguem mais impostos, não os alunos."
Haveria muitas outras perguntas, mas agora Carl e seus amigos querem ir estudar na biblioteca, ao contrário de seus pais de ’68 e ‘77, um dia após uma manifestação como a de ontem teriam passado fechados em uma assembleia geral para discutir . "Eu também estava lá no evento e diante do palácio dos Tories”, diz o estudante. "Eu não joguei pedras nem quebrei janelas; em princípio, sou contra a violência, mas temos marchado tantas outras vezes e obtido somente modestos parágrafos nos jornais, mas, desta vez, graças à desordem que explodiu, todas as TV e jornais falam de nós, inclusive a sua". Ok, mas e agora? "Agora aguardamos os sindicatos, os funcionários públicos, os trabalhadores. Voltaremos a nos manifestar, também junto com eles, também incluindo as suas batalhas. O mundo não precisa ser necessariamente como agrada aos banqueiros. Esse foi o começo, e continuaremos a lutar." Isso é apenas uma estreia, continuaremos o combate: onde já ouvimos essa história?
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