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quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

UM TIPO DE VIOLÊNCIA QUE É PRECISO ENXOTAR

Hilário Dick

Há muitas formas de os jovens serem violentados. Uma das mais recentes e mais desavergonhadas agressões pode ser encontrada na Revista “Veja” (edição 2100, ano 42, nº7, 18 de fevereiro de 2009)[1]. Na capa da revista aparece um adolescente enorme levando o pai e a mãe pela mão, pequenos, com os dizeres “Eles é que mandam”... Em letras menores, pode-se ler: “um retrato dos adolescentes de hoje: eles são os reis da era digital, decidem o que a família vai comprar, custam caríssimo, mas estão mais desorientados do que nunca”. A reportagem “especial” intitula-se “A juventude em rede”, das p. 84-93. A chamada do artigo diz: “Como pensam e se comportam os adolescentes de hoje: filhos da revolução tecnológica, eles vivem no mundo digital, são pragmáticos, pouco idealistas e estão mais desorientados do que nunca”. Quem assina é Anna Paula Buchnalla e, no final da reportagem, tem meia página de Jerônimo Teixeira.

1. Comandam a matéria dois títulos: o da capa diz “Eles é que mandam” e o título da reportagem, como tal, “A juventude em rede”. Aparecem, no título da reportagem, dois adolescentes atrás de uma “rede”, alegres, agarrando-se ou voando atrás de uma “grade” formada por tomadas elétricas eletrônicas. Estão felizes, atrás da grade, achando-se o máximo. A reportagem inicia com uma longa citação de “O Apanhador no Campo de Centeio” de J. D.Salinger, trad. de Álvaro Alencar, Antônio Rocha e Jório Dauster. Rio de Janeiro: Editora do Autor s/d que tem como título original “The Catcher in the Rye”, com várias edições e livro de cabeceira de milhões de jovens ao redor do mundo. Infelizmente, pelo teor da reportagem, teria sido muito bom reavivar nos leitores o que é, verdadeiramente, um/a adolescente e não fazer essa elencação de exotismos e, até, ameaças de “moralismo de cueca” que o texto, envolvido em recursos jornalísticos, tenta sugerir. Não nos referimos, tanto, aos autores do escrito, mas aqueles que promovem esse tipo de reportagens.

2. Além de cinco quadros ilustrativos com dados estatísticos (“seres tecnológicos”, “to pegando tô ficando tô beijando”, “o sexo e o compromisso”, “um guarda-roupa”, “a mesada” e “o melhor lugar do mundo”) tem oito fotos, não contando as montagens: 1. os dois jovens atrás da grade; 2. um rapaz com um computador e celular, chamando-o de mentor da casa; 3. uma menina falando no celular, dizendo “muita exposição e pouca intimidade”; 4. um rapaz do colégio Dante, falando do fim das tribos; 5. namorados de 16 anos, dizendo “aliança de compromisso”; 6. a menina Ligia Lapertosa na festa de 15 anos, falando da volta das festas de 15 anos; 7. uma menina em pose de balé, com os dizeres “é tudo muito igual”; 8. três meninas amigas de leitura, com os dizeres “devoção incondicional”.

3. Algumas frases

Acentuaríamos, inicialmente, algumas frases da reportagem que afirma terem sido feitas 527 enquetes com pais e jovens de 13 a 19 anos.
“Ganhou-se em liberdade e pragmatismo; perdeu-se em encantamento e idealismo” (uma afirmação baseada no que se ouviu, mas sem fundamento).
“Quem sabe ela (a reportagem) possa subsidiar pais angustiados (e irritados) com moças e rapazes para quem de uma hora para outra, eles, antes tão adorados, se tornaram “ridículos”. (descobrir que os pais são “ridículos” pode ser uma graça: a graça da autonomia ou, então, do protagonismo).
Lendo a reportagem, não há frases específicas de pais. Quanto aos jovens (adolescentes) aparecem duas frases de adolescentes de 17 anos, duas frases de adolescentes de 15 anos, seis frases de adolescentes de 16 anos e duas frases de adolescentes de 14 anos. (Nenhuma frase de jovem; todas de adolescentes. Em geral, nenhuma afirmação que prove que o adolescente sabe pensar. Supõe-se, provavelmente, que eles não sabem...).
“Mudar o mundo não é com eles. O que querem mesmo é ganhar um bom dinheiro com seu trabalho”. “... um trabalho que os faça ricos é o sonho de 64% dos adolescentes”. (É dedução de quem acha que sabe o que eles, de fato, pensam.)
“São também mais conservadores, em relação aos valores familiares (embora os pais, lógico, sejam ridículos”). (Mais “conservadores” por quê? É muito fácil concluir algo que precisa ser provado. Sabe-se que a instituição “família” é uma das mais apreciadas por todas as classes de jovens. O fato de chamarem os pais de “ridículos” pode ter muitas tonalidades e não exatamente o que a reportagem deixa a entender.)
“É, enfim, uma juventude que vive em rede, com tudo de bom e de ruim que isso significa”. (O que seria viver em “rede”? A rede da capa?). Felipe Mendes, da Research International diz que “o que preocupa nesta geração é que eles são concretos em relação a dinheiro e trabalho, mas muito básicos em seus sonhos e impessoais e virtuais nos prazeres que deveriam ser reais”. (Afirmação que tem sentido, mas genérica, talvez fruto do que se pensa dos adolescentes e não o que os adolescentes, de fato, afirmam).
“O lado ruim é que raramente tentam aprofundar-se em algum tema...” (...) “suas decisões costumam estar envoltas em interrogações, como se a vida fosse um eterno teste de múltipla escolha”. (Qual é a situação psicológica de um adolescente, diante de um mundo que exige decisões? Quem colabora para que não aprofundem ou, então, que façam da vida uma múltipla escolha?).
“Você quer tudo e, ao mesmo tempo, não sabe o que quer” diz Marcela Luccato, de 16 anos. (Essa menina de 16 anos diz toda a verdade, dela. Ela não estaria clamando por alguém que a ajude, seja companheira, seja educadora?).
“Eles custam cinco vezes mais do que há trinta anos”. (Duas perguntas: baseada em quê vem essa afirmação e quem são estes que “custam” o que a reportagem afirma?).
“Em nove de cada dez famílias que adquirem eletroeletrônicos, a decisão de qual aparelho levar é deles”. (Quem são os/as babacas?).
“E em que reside a maior culpa dos pais de hoje? Em não saber dizer o velho, bom e sonoro “não”. (Eis um discurso que, já quase no final de reportagem, vem vindo não se sabe de onde...A resposta estaria num “não” que se desaprendeu a formular. Até pode ser verdade, mas a questão tem raízes mais profundas).
“Dá para controlar um adolescente em condições razoavelmente normais de temperatura e pressão ou, ao menos, suporta-lo sem maiores traumas? Dá”. (Veja-se o verbo: “controlar”... Parece que essa é a atitude na qual se acredita. Talvez seja isso que acontece em muitos lugares. Tem-se medo de usar o verbo “educar”... E vem cinco sugestões para cinco “casos” diferentes: quando (o/a adolescente) bebe, quando não atende celular, quando abusa do telefone, quando se expõe demais na internet, quando há excesso de discussão entre pais e filhos. Não haveria outras “atitudes” mais amadurecidas a serem buscadas, outros “casos” mais sérios a serem refletidos?)

4. Alguns dados da reportagem
92% da classe A têm celular; de 2005 a 2008 o índice de jovens que acessam a internet passou de 66 a 86%. (Claro que é a notícia que as “empresas” gostam de ver...)
87% dos pais dos adolescentes ouvem a opinião dos filhos no momento da compra dos aparelhos eletrônicos da casa. (Não haveria opiniões em outros assuntos, em outros “momentos”?)
75% já namoraram e/ou ficaram. (E daí? O que acrescenta isso para quem é pai, mãe ou adolescente? Simples prova do exótico que se busca no mundo dos adolescentes.)
51% não fez sexo. (Dado até estranho... Mas, seja o que for, qual o interesse em saber isso? Seria por que é demais ou de menos? Enfim, só faz crescer o adolescente como exótico.)
40% das garotas usam pílula anticoncepcional. (Em vez de ficar na quantidade, por que não se fala, por exemplo, da forma como os pais falam disso para as filhas já que as entrevistadas devem ter sido, também, muitas mães?)
88% discordam de que a melhor coisa da vida seja beijar muitas pessoas na mesma balada. (Parece que os adolescentes são encarados como uns “babacas” que não pensam no que fazem. Sejamos sérios: quem afirmaria o contrário em público?)
78% valorizam a fidelidade. (Vendo a sociedade em que os adolescentes vivem, é um dado exótico porque é algo incomum... Sem penetrar na profundidade dos dados, a sociedade dos adultos olhando para esta percentagem parece que larga um largo sorriso de ironia.)
58% querem relacionamento estável. (Naquilo que os adolescentes são levados a ver ao seu redor, o que diz essa percentagem?)
a mesada (segundo a reportagem), aos 13 anos, vai de 100 a 300 reais; aos 14 anos de 150 a 400 reais, aos 15 anos de 200 a 500 reais; aos 16 anos de 250 a 600 reais; aos 17 anos de 300 a 700 reais. (Mesmo sem ter dados sobre isso, quem acredita nisso? Isso vale para a educação, os livros a serem comprados, as roupas a serem usadas, etc.? De qualquer forma, um dado que agride de forma vergonhosa e abusada.)
77% dos jovens citam a casa como o lugar em que eles mais gostam de estar, seguido do cinema e do shopping. (Lugares seguros, rodeados de arames farpados, onde se tem tudo... Por um lado, bonito; por outro, horrível quando se sabe que o grande drama do adolescente é não poder ir à sua segunda casa: a rua e quando se sabe que o maior desafio do/a adolescente é aprender a tornar-se independente. Além disso, a casa é o quê? o lar? o quarto com computador e TV? o som que posso manejar do jeito que quero? A casa seria, por outro lado, o lugar de encontro com os/as amigos/as?)
76% dos jovens se dizem sempre ou quase sempre felizes. (Oxalá fosse essa a verdade... Típica resposta que se dá para dar, nada mais.)
O guarda-roupa do garoto (considerando o celular, o relógio,o jeans, o tênis, a bolsa, as sandálias de salto, o top) tem o valor de R$ 2.955,00; o da garota, de R$ 9.499,00. (São estes os dados que “Veja” apresenta. Vai-se afirmar que essa é a situação de, ao menos, 20% dos jovens que vemos nas ruas? Se não, por que apresentar estes dados? É a violência simbólica da qual a elite não quer falar...)
A mineira Lígia Lapertosa, na festa dos 15 anos, convidou 700 pessoas. Durante a festa a garota trocou de vestido três vezes e distribuiu sandálias com sua assinatura. (O que passou na cabeça dos pais ao permitir estes gastos? Em que valores esta adolescente é educada? Vamos falar, então, do deputado, criado na polícia civil, dono de um castelo? Qual a moral de uma revista ao colocar isso numa reportagem desse tipo?)

5. Reportagem desavergonhada e violenta por quê?

Gostaríamos de fundamentar o nosso repúdio a esta matéria sendo motivo de capa da Revista “Veja” baseados nalguns fatos:

a) Olhando o conjunto da reportagem, a primeira pergunta é pelo público que ela tomou em consideração. Por alguns dados escandalosos (ou isso não tem sentido?), fica evidente que a reportagem fica na classe A, isto é, dos mais ricos que podemos imaginar. Aquela que não se vê, mas se sabe onde fica... São dados que fazem arrepiar qualquer pessoa de bom senso. Ou estaríamos nós num outro planeta? Estamos frente a uma descrição onde rostos bonitos e saudáveis se transformam numa agressão que toda pessoa conhecedora da realidade juvenil, também da realidade juvenil, percebe. É uma agressão. Uma violência da qual temos vergonha de falar. Contudo, quando se fala que um dos medos da juventude e da adolescência de hoje é o medo de estar desconectado, é a isso que a juventude que se quer referir. É a violência do consumismo, castigando uma juventude que vai descobrindo, com toda a verdade, a importância da aparência. Os rostos bonitos e saudáveis, os números, as afirmações, as segundas intenções são agressões que o coração juvenil (não só da classe A, mas de todas) sente como bofetadas.

b) A reportagem não distingue “juventude” e “adolescência”. Não é um assunto sem importância, como se poderia pensar. É evidente que os protagonistas da reportagem são adolescentes (e não jovens) da elite e da elite mais sofisticada. Vejam-se os dados apontados... Imagine-se um adolescente da classe popular (a grande maioria da população juvenil) lendo as afirmações, os dados e as percentagens que aí aparecem. Por que a reportagem não traz afirmações de jovens de mais de 20 anos?

O título da reportagem fala de “Juventude em rede”. Que juventude é essa? A que “rede” a reportagem se refere? Fica claro, por exemplo, que não se lê, na reportagem, nenhuma afirmação de alguém que seja realmente jovem. Temos certeza que qualquer universitário/a (jovem!) teria vergonha de aparecer assim numa matéria de revista que sabe ter muitos leitores. O fato de a própria “rede” ser formada por tomadas de instrumentos eletrônicos não conota o discurso de que estamos frente a um público palhaço e alegre escravizado por instrumentos que são levados a consumir? É uma falta de respeito que se esconde na figura do adolescente...

c) É uma reportagem que, mais do que mostrar, esconde a juventude, tornando-a invisível... Além de os que aí aparecerem não serem jovens (porque é jovem quem já começou a aprender a afirmar-se como protagonista), utiliza-se da figura do adolescente mandando nos pais, na tecnologia, na cultura e nos costumes. É mais do que certo que quem faz esse discurso é feito pela figura que representa nem 5% da população juvenil. Não se esquece somente a juventude ou a adolescência pobre, mas a população juvenil e adolescente em geral, afirmando-se que os “adolescentes” ou “jovens” ideais são estes que as fotos e os dados apontam. Os outros não existem. São os invisíveis que a sociedade não quer ver... Isso se chama de raiva da adolescência e da juventude. Já que não podemos matá-los, matemo-los/as pela imagem. Essa é a violência que a Revista “Veja” usa valendo-se não sei de que jornalistas...

d) Além de todas as agressões, a agressão se revela sob o prisma do farisaísmo moral. Vejam-se os dados com relação ao sexo e ao relacionamento afetivo. Isso não é o discurso nem dos adolescentes nem dos jovens. É o discurso dos “adultos” que não só perderam o senso do que significa ser pai ou mãe, mas estão a quilômetros de distância do desnorteamento em que afirmam estarem os “adolescentes” que tanto bajularam quando crianças, não sabendo transmitir-lhes valores, perdendo toda e qualquer autoridade moral. Acima de tudo, a reportagem pretende indicar, soberanamente, soluções para algumas situações sofridas, sim, mas vulgares e superficias, na família. Triste todo adolescente que não soube encontrar nem no pai nem na mãe a educação que tanto sonhavam e sonham! Quem convidou as 700 pessoas para a festa da Lígia Lapertosa? Quem faz a revista “Veja” colocar na capa a frase “São eles que mandam” não tendo a vergonha de pôr os pais e as mães levados pela mão de um adolescente com vontade de ter um/a companheiro/a que caminhasse com ele/a lado a lado? Além de tudo, desmoraliza-se e se ridiculariza a família, a instituição que o jovem e o adolescente, rico e pobre, mais admira...

e) De fato, são dez páginas que são a prova mais cabal de que o grande problema não é a juventude nem o adolescente, mas uma sociedade farisaica e desnorteada que só sabe ver os culpados nos outros, especialmente os mais frágeis, em nosso caso, os adolescentes e os jovens. Não se trata de dizer que os jovens e os adolescentes são sem culpa; trata-se de começar a ver o tamanho da violência que se bate sobre eles todos os dias, a partir de casa até a festa mais exótica que é capaz de aparecer há poucas quadras de nossos queridos lares, largando no mundo o resultado de sua incompetência educativa. Não se trata de “controlar” como a reportagem afirma explicitamente, mas de “educar”.

f) A reportagem “A juventude em Rede” ou, então, “Eles é que mandam” envergonha a todos nós: sociedade, pais, educadores e também jovens e adolescentes. Não envergonha, provavelmente, os responsáveis da revista porque ela, há muito tempo desaprendeu o que é vergonha, mas continua insistindo em pensar que vamos atrás das nojeiras que espalham, revestidas de imagens que só enganam os que querem ser enganados.

[1] Para ter mais dados sobre o tema “juventude” desenvolvido pela revista “Veja” leia-se CIRNE DE CALDAS, Paulo. “Da contestação ao consumismo: a trajetória da cultura jovem nas páginas da Revista Veja (1968/2006)”. Tese de doutorado defendido na PUC/RS, no Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social, 2007.

2 comentários:

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Roberta Cortez disse...

Estava agora mesmo fazendo uma pesquisa sobre esta reportagem, pois ela me pareceu muito irônica e agora vejo que, mais do que isso, ela é vergonhosa. o fato é que os responsáveis por esta "matéria" refere-se à 90% dos adolescentes como se estivessem falando de noventa por cento dos adolescentes do país todo; mas sabemos que a realidade do nosso brasil é totalmente diferente. Fica claro que foram entrevistados apenas adolescentes da classe A de elite.. além de incentivar o consumismo, o que se quer é preservar a hipocrisia. Nunca haverá uma geração decente se depender de adultos dominadores.

parabéns pelo texto!!!