Páginas

terça-feira, 1 de novembro de 2016

LAURO, NA ESTRELA QUE AINDA VAMOS VER

Estou sentindo que a tristeza está querendo fazer ninho na minha janela e acho que devo enxotá-la. É que ontem, junto com seis dos meus irmãos (um não pôde vir e o outro estava no esquife), fui no velório, encomendação e cremação de meu irmão mais velho: o Lauro. Ele, pai do Paulo Inácio, da Ana Paula e do André, estava lá com o jeito dele. Faltava ver a perfeição dele na língua portuguesa, os montes de folhas que escreveu, as ironias que vivia e fazia acompanhado de Figurelli,  Lermen,  Slomp e tantos outros; faltava a batina que ele usara por quase 10 anos e o volume do Padre Leonel Franca Igreja, Reforma e Civilização cheio de anotações que ele fazia à luz de lamparina, no seu tempo de férias de tempos passados; faltava a taça de chá de cidreira que ele, eu e o Sebaldo tomávamos falando de fedorzinhos da Universidade dos Jesuítas; faltou a sisudez do seu jeito de ser e, também, do seu jeito dirigir, amar e pensar. Ele lia muito. Lia livros grossos de pensamentos e teologias e vinha-me provocar especialmente em questões de teologia.
Não me lembro bem como fui o casamento dele com a Cenira, lá na Tristeza, em Porto Alegre, mas a irmã dela e a sobrinha da Cenira vieram falar-me, lá no velório, de várias coisas de rir. Foi muito bom e elas até falaram da kombi azul que eu dirigia. Os anjos me disseram que o Lauro, separando-se de Cenira, encontrara a oferta de Iracema não sei aonde, com a qual conviveu até ir para o hospital donde só saíu carregado como alguém que partiu. Após anos de convivência, no entanto, eis que Iracema foi invadida por tal de Alzheimer, doença com a qual não  se sabe mais onde se anda, nem o que se pensa – assim o dizem. Era de comover ver meu, nosso irmão, sentado ao lado da cama dela, da esposa, durante meses e anos, acarinhando a mão da amada,  levando-a a passear com cadeira de roda, falando pouco porque ela só murmurava por vezes.
Um dos amigos que ressalto no velório do Lauro – talvez seja uma pequena grosseria -  é o Sebaldo, do qual falei acima. Além das aulas, das poesias, das reflexões bíblicas lá estavam os dois (o Padre Evaldo já tinha morrido), forungando em tal de Dicionário Morfológico da Língua Portuguesa. Os dois falavam muito entre si. Ele, o Lauro, quando seminarista, fazia algumas malandragens como montar um esquema de o professor (padre) ajeitar um caneco de água de forma, que num movimento, o professor se molhava todo; trocar o giz por pedaços de mandioca descascada; soltar rato em sala de aula etc. E ele se ria e ninguém sabia quem fazia estas coisas. Sebaldo e Lauro recordavam isso e outras coisas mais importantes. Mas ele, o Lauro, era muito sério. Caminhava ligeiro também quando, como guris, íamos para a missa de pé no chão até aquela fonte onde lavámos os pés e púnhamos sapatos porque era feio entrar na igreja de pé no chão. Uma coisa que ele não gostava era construir casinha de morar, de brinquedo. Nunca vi ele tirar pedra nos colegas de aula...
O Lauro era sério e duvido que ele tivesse pensado que seria cremado. Mas foi, e eu assisti a cena pela primeira vez. O Lauro foi ao encontro daquelas nuvens azuis que fingiam ser o céu, mas ele foi para o céu. De mão em riste, ele foi ao encontro de Pedro, falando em latim:
- Você, Pedro, não poderia ter permitido que aquele Papa, que fizeram santo, fosse Papa.
- Como assim?
- Como é que você permitiu que escrevessem que o limbo, o lugar das crianças não batizadas, não existia mais?
- Professor Lauro, tu entendes de latim, mas eu entendo de limbo. Entra, e não fale demais...
Certo dia eu estava na dúvida se queria ficar padre. Corrijo: quiseram convencer-me que eu não poderia ser padre. Falei isso para o Lauro e ele fez aquele gesto de “não importa” e não disse nada. Ele era um professor que sabia a matéria, mas era durão. Dizem que os e as alunos/as temiam as respostas que o Lauro dava às perguntas.
Quando Lauro se separou de Cenira, fiquei um tanto sem jeito; não sei se isso melhorou ou piorou quando ele me apresentou a Iracema, bondosa, toda apaixonada, fazedora de coisas bonitas. Quando ele foi aposentado como professor da Universidade, encontrei-o certo dia caminhando tão ligeiro por um dos espaços da Universidade que chamei e ele não ouviu e eu corri atrás. Numa das casas em que ele morou tinha, dentro dela, uma escada que levava lá para baixo, na adega, e tudo estava cheio de livros e letras de Lauro.
Uma cena que gosto de recordar é quando ele vinha para as férias. O pai ia de carroça, lá para a cidade e pegar ele. Nós corríamos para abrir a porteira para deixar passar os cavalos puxando a carroça com aquelas rodas altas. Era uma dessas festas que não precisam de muita coisa para ser festa. Até me lembro da guabirobeira que tinha bem perto da estrada por onde o pai e o Lauro vinham. Mas Lauro morreu e lá, vindo de vários cantos, estávamos nós, irmãos e irmãs dele. Dizem que foi pancreatite, falam de pedra na vesícula, não sei. O fato é que ele estava aí fingindo que não nos ouvia, com as mãos entrelaçadas rezando as rezas que ele gostava de rezar. Aliás, ele e Iracema iam, fiéis, na missa daquela igreja da Rua da Independência, ouvindo o que o padre falava ou deveria falar.
Vi, pela primeira vez, o Gabriel me espiando; abracei a Ângela como nunca tinha abraçado; vi minha irmã Cema olhando tudo aquilo com olhos grandes; foi um milagre de Lauro o Humberto e a Jacinta se mandarem lá de Santa Cruz; vi o Aldino e a Ely misturando a tristeza e a alegria de ser avô duas vezes; vi o Otmar com suas bengalas com cara de quem, agora, é o irmão mais velho; vi a Ilse mergulhada numa meditação que só os anjos entendem; não vi o Eugênio que certamente se debulharia em choro, querendo consolar a todos e vi a mim mesmo caminhando para lá e para cá não tendo tempo nem condição de pensar o que eu deveria dizer como “irmão-padre”. Vi sobrinhos, sobrinhas, netos e netas tentando esconder o que sentiam. O que vi, também, e dos quais tinha saudades, era o Paulo e o André, filhos de Lauro e – não sei como Deus faz isso – vi minha sobrinha Ana Paula, filha de Lauro, celebrando seu aniversário no dia em que enterrava o seu pai. Ninguém segurava as lágrimas dela porque tudo dizia que isso era proibido. O filho e a filha dela, da Ana Paula com Paulo (o cunhado), estavam lá, lacrimosos, vendo a mãe e o pai tão assim, e o vô tão assim. Mexiam no celular quando a dor era demais.
Quando eu voltava da missa, naquele domingo, olhei no computador o seguinte recado de Ana Paula: É com muita tristeza que comunico o falecimento de meu amado pai, Lauro João Dick. A cerimônia será das 16h às 19h, no Crematório Metropolitano, em Porto Alegre, capela 4. Agradecemos as orações. Fiquei atordoado, mas logo mais Lúcia, sobrinha, me liga. E lá fomos nós viver o que nunca tínhamos vivido.
Seria um pecado, contudo, não falar dos amigos, amigas, parentes e não parentes, desta família e da outra, conhecidos e não conhecidos, colegas de Ana Paula e Paulo, que foram lá com corações solidários ou, então, não puderam vir. Era um domingo bonito e nunca tinha entrado naquela “cidade” onde se escondem ou se cremam os corpos. Na esquina da minha maldade não deixava de pensar: até a morte se torna um negócio, onde os silêncios, as informações, as escadas e elevadores tem cheiro de encontro com uma realidade que não gostamos de ver, mas um encontro que se torna bonito quando vai ao encontro de crenças que temos na vida.
Depois das despedidas, saímos daquele prédio e vimos que as ruas eram as mesmas, que todos que saíam tinham um jeito semelhante, que nem tudo era o mesmo porque o Lauro, com os diferentes adjetivos e substantivos, tinha sido mandado para uma estrela azul que algum dia vamos ver. A tristeza mudou de cor, ficou mais pesada e pediu nosso carinho. Desajeitados, afirmamos que ela – a tristeza – não deixa de ser uma mistura de alegria e esperança.
31 de outubro de 2016
Hilário Dick, irmão de Lauro


sábado, 29 de outubro de 2016

“QUANDO SE APRENDE A MORRER SE APRENDE A VIVER...”


Quando eu tinha 17 anos eu chorei, lendo Diário de um Pároco de Aldeia, de Georges Bernanos. Até me lembro da neblina que caía. O romance termina com a frase Tudo é graça”. E eu, adolescente, chorando, lendo este romance por sugestão de um professor que gostava de literatura. Quando estou indo para os 80 anos, vejo-me lendo uma espécie de livro de autoajuda, de um escritor norte-americano: A última grande lição – o sentido da vida, de Mitch Albom, escrevendo coisas que parecem escritas por mim, como a frase que pus como título. Presente de uma menina. Li os dois com bastante emoção, mas achei estranho eu me emocionar com o autor deste, de cuja pátria não gosto desde que tive que estudar inglês. Ele tem 58 anos e nasceu em maio, assim como eu. Uma frase do velho Professor Morrie, no livro, é: É impossível a um velho não invejar um jovem. Mas a questão é aceitar o que somos e gostar. Eu já tive o meu tempo de ter 30 anos, e agora estou no tempo de ter 78. Precisamos descobrir o que existe de bom e verdadeiro e belo em cada fase da vida.
Parece eu falando...  Sou, contudo, um ano mais velho que ele, o velho Professor.  Ontem  faleceu o Padre Victor, de 93 anos, e dias atrás eu estava com ele na mesma sala de fisioterapia, com a fisioterapeuta quase não encontrando formas de lidar com o peso de 93 anos... Assim é a vida que vai chegando...  Com o Padre Victor não podendo com o peso dele mesmo.
Tenho um escrito de 169 páginas, tipo 12, folha A4 e descobri que entre 82.481 palavras, as cinco palavras que mais aparecem neste escrito, é Vida (150), Morte (84), Esperança (82), Tempo e Deus (72) e Caminho (70). As palavras que menos aparecem são Tristeza (14), Riso (25), Amor (30), Pastoral da Juventude (42), Jesuítas (49), Saúde (47), Feliz (51). Palavras que dançam no meio são memória (66), alegria (68) e medo 58). Curiosidade estranha a minha... O culpado é o vento sul que bate forte. Contudo, achei interessante descobrir este pedaço de mim.
O livro de autoajuda que li é a história de um professor que vai morrendo e conversando com um ex-aluno, jornalista, chamado pelo idoso de “treinador” – Mitch -  enquanto se ajeitava com a ELA, isto é, a Esclerose Lateral Amiotrófica -  uma doença degenerativa do sistema nervoso, que acarreta paralisia motora progressiva, irreversível, de maneira limitante, sendo uma das mais temidas doenças conhecidas. O velho Professor se chama Morrie. O pai de Morrie Schwartz era Charlie. Morrie estava casada com Charlotte e, na sua doença, tinha uma ajudante de nome Cannie. Os dois filhos do Professor idoso e doente não se davam bem. Mitch, o ex-aluno, era casado com Janine, que só depois de muito tempo foi com o marido visitar Morrie. Depois de 7 capítulos da “tese” que os dois escreviam, começam as visitas das terças-feiras. O livro é composto de 14 terças-feiras e uns capítulos a mais com outros títulos. Falam do mundo, da autocomiseração, do remorso, da morte, da família, das emoções, do envelhecer, do dinheiro, da permanência do amor, do casamento, da cultura, do perdão, do dia perfeito e da despedida. Não saberia dizer de qual gostei mais. Sei que Morrie morreu num sábado de manhã.
Já escrevi bastante sobre a morte e minto se digo que superei o medo de morrer. Rezar isso é rezar a esperança. Num encontro com jovens, nalguma parte desse planeta, levaram-me, em certo momento – junto com os participantes – a fazermos uma “meditação” no cemitério de frades que tinha por perto. Um cemitério pequeno, rodeado de pequenos ciprestes, todo gramado, tendo no centro uma cruz de pedra. Achei aquilo macabro, mas fui, sentando-me numa cadeira enquanto a meninada se sentava no chão. Provocado, falei com as tumbas de 5 frades me espiando... Falei da morte, do medo da morte, da fé na ressurreição, da morte que faz parte da vida e muitas outras coisas. Era noitinha. A gurizada, vendo a minha sinceridade, começou a perguntar várias coisas:
- Você acha que a morte é o fim de tudo? foi uma das perguntas.
Não falara isso, mas respondi:
- A morte é o começo da Vida... Só sabe viver quem sabe morrer...
Falei bastante, até sermos convidados para irmos a um outro espaço. Fui em silêncio carregando a minha cadeira e não sabendo o que passava nas cabeças e corações daqueles jovens. Sei que, para beber esperança vou, bastantes vezes, numa casa de idosos perto de minha residência. Falo com os enfermeiros e enfermeiras e pergunto, vendo este e mais aquele fora da casinha:
- Vocês vão rir de mim quando perguntar 38 vezes, num meio-dia, pelo dia do mês em que estamos?
Eles/as prometeram que sim, mas disseram que vão dizer que eu já perguntara isso 37 vezes. Não discuti com eles/as. Outra coisa que já fiz – para rezar ou beber a esperança - foi escrever como vai ser minha morte e meu enterro...  Na crônica descrevo até o cemitério em que serei enterrado, até as pessoas que vão chorar, até como vou estar deitado naquele caixão, de boca fechada.  Já combinei com todas as pessoas que, quando eu estiver assim, elas é que vão falar. Vou somente escutar.

Enfim, não tenho novidades sobre a morte. A novidade é que estou chegando aos 80 e vejo a minha pátria sendo estuprada por uma elite que sempre foi nojenta, só que neste momento ela é nauseabunda. A novidade que me faz ficar de boca aberta e de coração acelerado é ver que quem está agitando o Brasil são os estudantes do ensino médio, não os jovens, nem os universitários e nem os trabalhadores. De repente a Ana Júlia, de 16 anos, aparece na mídia dando chicotadas inimagináveis em tempos passados. Melhor, em 2013 isso começava a se manifestar nas ruas e parece que não sabíamos enxergar este fenômeno. Quem diria que o Brasil teria milhares e milhares de escolas ocupadas por esta rapaziada? Estas “novidades” é que me fazem voltar ao tempo e me alegrar porque, depois de ter trabalhado com as juventudes por mais de 45 anos, como uma causa, de repente vejo os adolescentes me darem uma rasteira que deveria fazer-me mais “jovem”. Aprenderia, na certa, que se aprende a viver quando se aprende a morrer. O idoso, em mim, precisa morrer para que nasça outro idoso.

Pe. Hilário Dick